De seus cascos irrompe o tremor que vai percorrendo patas, dorso, pescoço, orelhas e o olhar — atento! atento! —, olha o que está acontecendo à sua volta: água subindo com rapidez. O cavalo de pelagem marrom tenta chegar a algum lugar seguro. A força da água não o deixa avançar. Tropeça. O campo está alagado, mas ainda dá para avistar frutas no pomar. Revoadas de pássaros espalham ruídos, parecem avisos a dizer: vamos, vamos todos para bem longe daqui!
Na janela da casa, a mulher acena com uma criança no colo, grita, apela por socorro. Ainda ontem, nessa casa foi o aniversário do avô; filhos, netos, parentes, vizinhos, todos cantavam celebrando com alegria seus oitenta e nove anos. O avô ajudou a criança a subir no cavalo: deixe as pernas bem junto ao tronco, segure bem as rédeas. Ainda ontem, sentado no banco junto ao lago, o jovem casal desenhava o futuro, ao lado da araucária, a casa toda amarelinha com portas e janelas pintadas de azul, floreiras na janela e crianças brincando no quintal. Era isso que sonhavam, o casamento estava próximo.
A água continua a subir.
A correnteza vem trazendo baldes, bacias, roupas, animais. Uma cadeira segue na água, vai balançando — quem ficou para trás? Vozes clamam por socorro, aqui e ali chegam botes, ainda é possível resgatar pessoas. E galinhas, porcos, cachorros, gatos, como escapar da correnteza que, voraz, segue num ímpeto
arrastando tudo?
Há muito tempo, seu Justino, homem de longeva sabedoria, já preconizava: cuida da natureza senão um dia tudo isso vem abaixo; temente a Deus se punha sempre a orar, a pedir proteção para a terra e sabedoria aos humanos, sua voz não tinha lonjuras, se aquietava logo atrás das moitas da sua casa — quem ouvia?
Quando a chuva se prenunciou, na pequena Capela dizia-se que era uma maldição diante de tantos pecados do homem. Não respeitar natureza, não respeitar gente, não respeitar bicho, vão ver só o castigo! Dona Ana acreditava nisso. Costumava rezar e acender vela a Nossa Senhora Medianeira — “abençoe tudo e todos, nossa padroeira”, rogava com fé.
O cavalo começa a se desprender do chão, agita as patas, nada. A correnteza avança, leva o animal cada vez mais longe, ele já não reconhece a paisagem, a água barrenta entra nas casas, preenche todo o espaço vazio e são arrastados para fora todos os pertences das famílias. Barcos e botes passam de lá para cá carregando pessoas, também alguns animais de estimação. Uma família se aproxima, tenta subir no bote, o bebê escorrega dos braços da mãe e a correnteza o leva. Os braços se estendem para o alto, o desespero encobre o semblante materno mas não há tempo para lágrimas. É preciso correr, tudo pode piorar em minutos. Corrida contra o tempo. O choro chega depois no abrigo, escorrega, inunda tudo de lamento.
Já não há mais gente por aqui, não há mais casas, só se enxergam os telhados. E, em um deles, o cavalo sustenta seu corpo, tenta se equilibrar na superfície inclinada, seu olhar se estende no mar barrento e, entre tantos objetos arrastados, o corpo de um homem segue inerte nos tropeços das ondas. A noite tinge de tristeza o coração do cavalo em cima do telhado, sente frio, fome, mas precisa estar atento, patas firmes, olhos abertos. Chegam lembranças da casa de seu dono, o riso e a alegria das crianças, gostava de campear naquelas terras férteis, de sentir o cheiro do capim no pasto, das árvores em floração, ver os cachos de uva, depois era o vinho compartilhado com alegria nas festas da família. Havia a esperança de que a colheita seria farta e que a abundância abrigaria todos os desejos de prosperidade.
Quando a chuva estrondou, o medo foi tomando conta de todo ser vivo, pessoa, vegetação, animal, tudo se aquietou, era temor do fim da existência — nada aguentaria tanta enchente. Disso já se sabia. Avisos não faltaram, há de se ter cuidado com solo, rios, mata, criação.
O sol desperta novo ânimo no cavalo do telhado. Agora o seu corpo vai se aquecer, tornar-se visível. É possível alguém passar por ali e que ele seja visto. Com tanta gente a ser resgatada, teria ele alguma chance de sobreviver? Chegam homens preparados, se aproximam do telhado de maneira suave, o animal não pode se sentir ameaçado. Ele continua atento, percebe o laço afetivo, que não vão judiar dele, não
irão jogá-lo na enxurrada, sente confiança, aquieta o coração e se deixa amparar. Segue acolhido, com cuidados médicos. Agora está sereno, nem sabe que recebeu o apelido de Caramelo e se tornou um símbolo.
Foi preciso um representante do mundo animal para voltarmos a estabelecer alguma crença na nossa humanidade que anda tão abalada. Quanta resiliência e delicadeza no Caramelo. Linda crônica!
Beijos
Lourdes, enquanto eu lia sua crônica eu ouvia sua voz emocionada. Lembrei-me do conto de Guimarães Rosa, o Burrinho Pedrês do livro Sagarana. Outro equino que mostrou resiliência nas vicissitudes que essa vida traz não só para homens, mas também para os animais. Parabéns pela escrita forte, mas ao mesmo tempo delicada na descrição dos acontecimentos tão tristes que o sul do nosso País está vivendo.
Maravilha de texto, Lourdes! Consegue nos fazer vivenciar a catástrofe. Leveza na forma de descrever a morte, a perda e o desespero. O Caramelo é o fio da esperança, é o exemplo de resiliência que acredita que tudo isso vai passar. E vai passar. Parabéns!
Otimo Lourdes, grande sensibilidade .Parabéns
Lourdes, que belo e comovente texto. Que a Esperança bem sucedida de Caramelo contagie os gauchos na reconstrução de suas vidas.
Estou apaixonada pelo caramelo que exemplo de paciente ele me emociona à todo instante, inacreditável.
Lourdes, Parabéns pelo texto, sensível e envolvente sobre um ser vivo que nos trouxe uma esperança, a união de todos os humanos para juntos mudarmos esta realidade !!!
Lourdes , adorei seus textos. Eu lia tanto que minha mãe resolveu controlar o tempo. Para escapar desse controle eu lia no banheiro e à noite com uma lanterna Lia embaixo dos lençóis.
Até hoje se não tenho nada para ler me sinto vazia.
Que lindo texto, Lourdes! Impossível não chorar, se emocionar.
Centenas de “Caramelos” perdidos ou mortos não tiveram a mesma oportunidade. Sabemos mas a imagem da resiliência é o alerta , emociona a todos e você Lourdes descreveu de forma sensível a tragédia que não se apaga…Parabéns!!!
Parabéns Lourdes.
Mais um belo texto para nos fazer refletir .
Lourdes, querida!
Amei a crônica do Caramelo! Um texto sensível, forte, comovente e, como sempre, muitíssimo bem-escrito. Parabéns!
Que Deus abençoe o povo do Rio Grande do Sul e de todo o Brasil, sempre solidário e prestativo.
Que tenhamos cada vez mais olhos atentos para a natureza e para os sinais que ela nos dá. Que respeitemos mais o nosso planeta e o tratemos com o carinho e cuidado que ele merece.
Torçamos e rezemos agora para que os gaúchos recuperem seus bens e sua autoestima e nunca percam sua coragem e alegria de viver.
Um beijo carinhoso.