Não fica perto que ela é louca, falou uma colega que passou do meu lado. Eu continuei ali tentando ajudar a passar o cadarço com a ponta esgarçada pelo buraco do tênis. Se você ficar perto vai ficar louco também, insistiu. Eu acabara de molhar a ponta do cadarço na boca pra ajeitar os fios e ajudar a passar pelo buraco, senti que já estava molhado….
Calíope já tinha tentado isso também! Agora a saliva dela já estava na minha boca e eu sabia que era assim que se pegavam as doenças.
Então vou ficar louco. Desisti de ajudar e fiquei pensando, não vou contar nada pra ninguém. A Calíope é louca, eu vou ficar louco.
A menina era estranha, muito branca e comprida, devia ter uma cabeça a mais de altura do que todo mundo, o cabelo era bem pretinho e ela muito magra.
Uma coisa me chamava atenção, estava sempre sozinha, ninguém brincava com ela, nem comigo, então talvez ela quisesse brincar, não tínhamos ninguém.
Mas descobri que a Calíope é louca e eu ficarei logo mais…
Apesar de querer brincar nunca achava um jeito de me aproximar, ela não me enxergava, estava sempre olhando pra longe, não me via. Parecia estar esperando alguém ou alguma coisa que nunca chegava.
Agora que ela estava apanhando para passar o cadarço pelo buraco do tênis, me pareceu o momento de aproximação.
Vou ajudar, eu consigo.
Disseram que é louca e daqui a pouco eu também.
Tempos depois descobri que a família vinha de um lugar distante, acho que Grécia e talvez isso explicasse tudo, não era estranha, era estrangeira.
Ser estrangeira fazia com que eu a achasse fascinante, vinha de outras terras, sabia do mundo.
Hoje penso que éramos dois estrangeiros, ela de um outro país e eu de outro planeta.
Um dia vi Calíope sendo escoltada pelas professoras no recreio, saía sangue pela camisa, parece que correndo bateu a barriga na quina de uma janela.
Na sua cara não havia dor, talvez espanto, os pais vinham buscar, então, ia embora. Alívio. Um certo olhar de triunfo, sairia, conseguira se libertar.
Acabou o recreio, voltei pra sala de aula. Não conseguia parar de pensar no olhar da menina.
Nunca mais vi Calíope.
“ não era estranha, era estrangeira”… adorei isso!