Clube dos Escritores 50+Adolfo Leirner Beneficência

Beneficência
ou quem é você diante da morte?
de Adolfo Leirner

Muitos atravessam a vida sem ter contato com a morte. Outros a veem de passagem, quando perdem alguém querido. E há aqueles que convivem com ela cotidianamente. Coveiros, agentes funerários, enfermeiros, médicos: cada um concilia vida e morte à sua maneira. Uns tornam-se duros, outros filósofos, alguns se matam. Vou contar aqui como entrei para “esse grupo”.

Engenheiro, há dias trabalhando em uma sala de cirurgia experimental, conectei ao coração de um cão um par de fios ligados a um aparelhinho que havia projetado. O coração, que até então batia preguiçoso, passou a seguir os estímulos elétricos, contraindo com mais força e velocidade. O cirurgião era Adib Jatene, auxiliado por Décio Korman. Olhei para eles e pisquei, satisfeito. Em seguida, me afastei da mesa de cirurgia e dei um salto, como quem comemora um gol de placa.

Passados alguns meses…

Típico dia de inverno, céu muito azul. O trânsito flui, logo chego à Beneficência Portuguesa. Entro no hospital com passos firmes, parando apenas para procurar o caminho até o Centro Cirúrgico. Sou jovem, confiante, sem medo de desafios. Trago em uma maleta o primeiro marca-passo feito no Brasil. Destinado a uma menina com doença de Chagas e coração frágil.

Vestido com pijama cirúrgico azul, passo pela enfermaria da Recuperação. Em um dos leitos, vejo uma mulher sentada, braços e pernas apertados por torniquetes elásticos. Respira com dificuldade, mesmo com a máscara de oxigênio no rosto. Tem os cabelos brancos desalinhados e a pele pálida de assustar. Ao seu lado, também com uniforme hospitalar, escondido entre tubos e frascos, está Paulo Paulista, jovem cirurgião, moço franzino e de olhos simpáticos, manejando um gotejador.

– Acho que não vai, não – diz ele.

– Hum, hum – respondo, sem saber o que dizer. Fico constrangido por invadir a agonia de alguém. O ato de morrer é território proibido. Obscenidade reservada a médicos, enfermeiros e agentes funerários. Como eu não era nenhum deles…

Entro na sala de cirurgia. Em volta da mesa estão Adib, Cantídio Moura Campos e um residente desconhecido. Na mesa, sonolenta pelo pré-anestésico, Isabel, uma menina magra e descorada, espera seu destino. Começa o ritual, como uma missa já rezada mil vezes: a marcação da área de incisão, a cobertura com campos cirúrgicos, a cortina de tecido escondendo a cabeça. A menina desaparece sob os lençóis azuis. O cirurgião, paramentado, vai até o corredor e lava as mãos demoradamente, repetindo os gestos feitos em centenas de cirurgias. Não fosse esse o primeiro teste do nosso marca-passo, seria pura rotina. Observo a paciente por entre os cirurgiões. Fascinado, vejo Adib fazer uma incisão no lado esquerdo do tórax, e cauterizar meticulosamente os pontos de sangramento. O bisturi elétrico provoca um odor desagradável de carne queimada. A paciente está muito magra, é fácil chegar ao coração, que é grande e bate sem força nem ritmo.

– Está parando – diz Adib, calmo.

Cantídio, não tão calmo, orienta o anestesista:

– Adrenalina, gluconato, massagem, rápido!

Adib enfia a mão no tórax da paciente e começa a massagear o coração desanimado. Assim permanecem por 30 minutos, entre drogas e massagem. Então eles se entreolham, balançando a cabeça. Sacam as luvas, pedem a um residente que feche a incisão pela qual se vê o coração parado. Começa a retirada dos campos. Novamente vemos a menina, desta vez morta. Desacostumado com a cena, observo Isabel com estranheza: parece igual, mas falta alguma coisa. A alma, talvez?

Ao sair do centro cirúrgico, encontramos na sala de espera um grupo de pessoas vestidas como ricos, mas que nos aborda com humilde ansiedade. Adib me apresenta a eles. É um deputado do nordeste, alto e balofo, de meia-idade. Terno azul marinho, camisa branca, gravata de seda. Traz na lapela uma roseta de comendador, e um pequeno escudo da República em ouro e esmalte. Sua esposa, vestida de Chanel e exalando Miss Dior, tempera a prosa alegre com seu forte sotaque nordestino. Com tanta sociabilidade, ninguém poderia dizer que o Deputado Cavalcanti seria operado a seguir.

Resolvo ir até o carro guardar o marca-passo, que sequer saiu da caixa. Aproveito para comer um misto-quente com guaraná no bar da esquina. Resolvo vadiar um pouco. Vou até a Sears. Compro uns jeans importados e, de óculos escuros, volto ao hospital.

Vejo Adib, alto e encurvado, conversando com a família do deputado. O ambiente e as vozes sussurradas me afastam do grupo.

Entro na sala de operações e bingo! O deputado virou… nada. Pálido, nu, pau descansando entre os pentelhos, tórax pintado de iodo. Não dorme, está morto. Aprendo que a morte e o sono têm aspectos diferentes. A palidez, quem sabe.

A enfermeira traz as roupas do falecido. No paletó, a comenda e o escudo da República reluzem. Vestido, saberemos que era um homem importante.

Decido dar o dia por encerrado. Na saída, encontro Paulo Paulista, agora com roupas de passeio e um embrulho de jornal debaixo do braço. Pergunto:

– E aí, Paulo? Que pacote é esse?

– É o coração daquela senhora que vimos de manhã. Estou levando para examinar no Instituto.

E foi assim que me tornei membro desta distinta categoria dos que têm a morte como parte de suas vidas. Resolvi não endurecer o espírito, nem me matar. Tal qual o coveiro de Hamlet, prefiro filosofar.

3 comentários

  1. Muito bom!
    O cachorrinho teve sorte!
    Olha só a importância de engenheiros, eita maquininha poderosa! Parabéns!
    Parece que você não tem medo da morte, grande vantagem em relação a um povo que se assusta muito com a única certeza na vida!
    Mas que é um espanto, ah! isso é!

  2. Que experiência! Difícil lidar com elementos tão nebulosos sem turvar a mente. Bem-vinda a luz da filosofia que ilumina sua escrita. Parabéns.Adolfo.

  3. Adolfo, sua bela crônica-depoimento expõe com coragem a convivência diuturna das equipes médicas com a morte. Felizmente, sua opção por “não endurecer o espírito”, permitiu florescer o escritor. Me lembrou a célebre frase “hay que endurecerse pero sin perder la ternura jamás”. E, o que me parece mais importante, sua escrita prova, mais uma vez, que escrever é vencer a morte.

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