Beijo alheio,
por Bettina Lenci

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Muito recentemente aprendi a encomendar livros pela Internet. O meu grande prazer sempre foi o de ir à livraria, nem sempre para comprar algum livro, vou porque gosto do cheiro, das fotos e desenhos nas capas. Gosto de  virar as páginas dos livros de fotografia e arquitetura, grandes demais para a prateleira de minha biblioteca. Gostaria de colocá-los, um em cima do outro, por ordem de tamanho, sobre a mesa de centro, os dorsos todos voltados para o mesmo lado e por fim um vaso adornando-os, não posso fazê-lo , pois não possuo mesa de centro. Gosto também e surpreendo-me sempre com o ato criativo, ao analisar as novidades expostas na boca do caixa. Pequeninos livros de auto-ajuda, caixas de fósforos com mensagens amorosas, caderninhos coloridos, cartões artísticos para diferentes datas comemorativas. Quase como ler um romance de costumes, é espionar quem são os leitores através da leitura da orelha do livro que estão folheando.  Concordo que encomendar livros pela internet é em tudo mais prático do que ir à livraria , mas como não viver a atmosfera meio diáfana, perambuladora, do ar rarefeito que envolve os mistérios não desvendados estacionados nas prateleiras de madeira? É este o clima que está dentro das pessoas que gostam de ir às livrarias.

Por outro lado, gostei da Internet porque praticamente todos os títulos esgotados que eu procurava, encontrei nas estantes dos sebos. Lá posso escolher o estado em que o livro se encontra, os preços e um resumo do conteúdo sem ter que ler nas orelhas ou perguntar a um vendedor que nem sempre entende o que estou procurando.

Hoje recebi pelo correio, muito bem embrulhado, o Mrs. Dalloway. Comecei à folheá-lo e tive uma experiência que adorei:  li a história sob o olhar do leitor anterior. Havia anotações nas beiradas das folhas. Era como se eu discutisse o livro com um interlocutor. Cheguei a brigar com ele ao não concordar com uma de suas conclusões para logo mais agradecê-lo por uma passagem que eu não havia entendido. Era um leitor culto. Procurei deduzir, através da sua escrita, se seria homem ou mulher e se lia deitado ou sentado. Às vezes me parecia sentado porque a letra era redonda e bem feita indicando talvez ser uma mulher. Outras vezes a letra era um garrancho de quem escreve uma anotação na cama, sem apoio: uma letra mais miúda e escorregando pela lateral da página. Quem sabe de outro leitor brigando com o anterior. E se marido e mulher leram o mesmo livro? Não encontrei uma terceira caligrafia, mas estou fazendo as minhas observações, com minha letra, que difere das outras duas. Quando terminar de lê-lo, vou vender para um sebo e imagino assim, não romper com a cadeia de vários pensamentos sobre o mesmo trecho. Seria como se a leitura do Mrs. Dalloway fosse algo de hereditário, assim de pai para filho.

Uma das observações me chamou a atenção. Entre tantos outros momentos do dia de Clarissa,   descritos por Virginia Woolf, aparece um trecho sublinhado, ao lado uma anotação surpreendente. O trecho transcorre assim:

“Veio então o mais raro momento de toda a sua vida, ao passarem por uma urna de pedra com flores. Sally parou; colheu uma flor; e beijou Clarissa nos lábios. O mundo inteiro poderia ter desabado Os outros desapareceram; estava ela sozinha com Sally. Foi como se tivesse recebido um presente, embrulhado, e lhe houvessem dito que assim o conservasse, sem olhá-lo, um diamante, uma coisa infinitamente preciosa, embrulhada, e que, enquanto caminhavam ( daqui pra lá, de cá pra lá), ela ia descobrindo,  o que seu esplendor irradiava através do invólucro, uma revelação, um êxtase religioso! – senão quando o velho Joseph e Peter passaram por elas:

– Contemplando as estrelas? Indagou Peter.”  

Ao final deste episódio, encontrei, na lateral da página, sublinhado de lápis preto, energicamente, o seguinte comentário: “BEIJO DE CLARISSA E SALLY” e quando a autora descreve a sensação do beijo  em Clarissa, a observação é: “ REAÇÃO DE BEIJO” e nada mais.

Espantou-me a reação do meu interlocutor porque esta avaliação nada mais é do que o óbvio que acabamos de ler no texto de Virginia Woolf.

Por que será que o momento do beijo, a sensação descrita com tanta maestria e emoção não o tocaram com mais profundidade?

Teria ele se incomodado com a cena? Chocado com o fato de serem mulheres se beijando? Ou talvez um diretor de teatro fazendo anotações para pontuar a peça que estava montando?   

Jamais saberei, mas com certeza continuarei indo às livrarias para passear, folhear, saborear títulos por uma incorrigível curiosidade humana. Mas continuarei também a procurar nos sebos, livros esgotados e daqui para frente só escolherei aqueles que têm anotações de outrem nas laterais das páginas. Esta é mais uma forma de imaginar, conhecer, avaliar o que outros antes de mim sentiram e pensaram sobre o mesmo livro.

Por um lado, não existe  melhor diálogo, silencioso, do que em um livro comprado no sebo , com as margens escritas por um leitor desconhecido.

Por outro, livros, de qualquer tamanho ou forma, empilhados, espalhados, arrumados, emanam calor para um coração solitário.

 

*imagem Reprodução Internet

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BETTINA LENCI – Uma empresária que se realizou tendo como início profissional a história da arte e a fotografia, mas que, posteriormente, descobriu que lendo e escrevendo é possível criar um mundo com um olhar agudo sobre o cotidiano de todos nós.

 

2 comentários

  1. Muito boa essa sacada das marcas que cada um deixa nos livros. Uma relação de diálogo se estabelece de cada leitor com ‘seu’ livro. ‘Seu’ entre aspas – pois cada livro se modifica, então, de acordo com as mãos que o seguram. De acordo com a tradução peculiar que cada um faz da estória. De acordo com o olhar do leitor. Tablets! Acho que esses não permitem especulações, não?! Não deixam vestígios! Em tempo: intrigante título do texto!

  2. Também fico muito curiosa com o que pensam outros leitores que passaram pela mesma experiência, antes de mim, mas confesso que também me incomoda, gosto da leitura solitária.
    Estranho também quando retomo algum livro já marcado com minhas impressões, há tempos.
    Muitas vezes não me reconheço nestas marcações.
    Somos seres cheios de nuances, que mudamos a cada momento, dependendo do que vemos, do que sentimos…
    Bela crônica Bettina!

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