Clube dos Escritores 50+ Eder Quintão PL 904 2024

Avenida Baxter,
crônica irônica e indignada
de Eder Quintão

Para os que nunca ouviram dela. Não era no exterior: era aqui mesmo, e longa, contornando dois corredores do hospital. Apensos aos postes hospitalares, refletindo a iluminação ambiente, os frascos de soro brilhavam assemelhando-se a luminárias à cabeceira de cada maca ao longo de todo o andar do prédio de emergência, prolongando-se à direita pela alta demanda diária. 

Baxter? Por que Baxter? Não um homenageado político, figura histórica: era a marca do laboratório produtor de frascos de soro glicosado adquiridos pelo hospital. E avenida? Assim chamávamos o longo corredor com as inúmeras macas dedicadas às pacientes da ginecologia atendidas no plantão diário e submetidas a curetagem uterina após aborto provocado, necessitadas de antibióticos e analgésico pela infecção com febre alta. Todas pobres, indigentes, de pele invariavelmente escura, trazidas da periferia de São Paulo.  As brancas, as privilegiadas da classe abastada, se socorriam em clínicas privadas para o trabalho do aborto, criminoso perante a lei, mas bem remunerado em endereços notoriamente conhecidos, providencialmente ignorados pela autoridade policial.

Além da cor da pele distinguiam-se essas clientes pelo serviço peculiar utilizado. Este da avenida Baxter, era ato cirúrgico sem anestesia, que a moral do dia mandava punir pelo pecado cometido, de sofrimento atroz na dor da curetagem para remoção do que restara do aborto, de causas muito bem narradas e listadas – pelo humor negro dos plantonistas – uma lista crescente em folha presa à parede na diminuta sala ginecológica: esforço para tirar água do poço, queda na escada, prateleira que tombou sobre a barriga, escorregamento com queda sobre um tronco de madeira, tosse muito forte com febre, e além das várias causas eteceteras, as infelizes narravam serem esmurradas pelos afetuosos maridos por terem engravidado sem a aquiescência deles… ou por maridos ainda bem que, mais afetuosos, insistiam em violentas relação sexuais sabendo-as em resguardo de gravidez (eram as explicações mais fáceis de compreensão para as estatísticas cínicas dos médicos plantonistas). Mas havia também as destemidas, arrojadas e honestas: a agulha enfiada pela curiosa machucara muito ou então: “vim por causa da febre e perder sangue por baixo” … (minha menstruação atrasou muito e me catucaram o útero com uma chave de fenda).

Isso era história do século passado, num tempo em que aqui nem havia divórcio. Hoje tudo mudou com pílulas abortivas, ultrassom, simples aspiração indolor do conteúdo uterino em substituição ao DIU e às pílulas anticoncepcionais.  Naquele tempo nunca pregador evangélico, padre ou outro clérigo visitava ou sabia da existência da avenida Baxter, porém, estranhamente prometem-nos agora uma lei brotada, melhor, abortada de outra câmara de tortura parceira da sala ginecológica de nossos plantões.  Agora é a Câmara dos Deputados que quer nos devolver a felicidade democrática à moda do Afeganistão. Que Allah tenha misericórdia das almas femininas prestes ao abandono pelo Deus cristão! 

7 comentários

  1. Dr. Eder expondo na lata o Brasil, nu e cru. E provavelmente com várias outras avenidas Baxter por aí.
    Parabéns!

  2. Prezado Éder, enquanto médico e escritor, você expõe de forma cruenta a realidade dos abortos no Brasil. Seu texto — ato cirúrgico e sem anestesia como disse — ajuda a tratar esse mal que nos rodeia.

  3. Sem mencionar a já tao martelada exposição ao infame estuprador, voce expoe o resultado de que poucos ousam mencionar. Está tao claramente exposto quanto
    a luz da sala cirúrgica dos brancos em que os abortos sao conduzidos enquanto para aqueles com o defeito de pele, ( pobres negros e mestiços) acontecem nos mais escuros e fedidos corredores da miséria.
    (Uma realidade tao injusta quanto esta nova lei sobre quem é traficante e que nao é!).
    O brasil continua com a mentalidade escravocrata.

  4. Crônica necessária, de autor que viu o lado que, nem nós, tampouco os hipócritas da Câmara veem.
    Uma luta antiga, pelos direitos de todas ao aborto assistido por médico, diferente do imposto às mulheres pobre. Até nisso o Brasil é injusto!

  5. Crônica necessária, de autor que viveu o lado que, nem nós, tampouco os hipócritas da Câmara veem.
    Uma luta antiga, pelos direitos de todas ao aborto assistido por médico, diferente do imposto às mulheres pobre. Até nisso o Brasil é injusto!

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