Clube dos Escritores 50+ Fernando Rohan de Lima Brás Cubas Vive!

#autorconvidado
Francisco Rohan de Lima
Brás Cubas vive!

Um dia de manhã… pendurou-se me uma ideia no trapézio que eu tinha
no cérebro
Brás Cubas, in “Memórias Póstumas…”
                                – Machado de Assis

Recentemente explodiu a notícia de que a edição norte-americana de Memórias póstumas de Brás Cubas, do velho Machado, atingiu o primeiro lugar na lista dos livros mais vendidos no segmento de literatura latino-americana, batendo inclusive Cem anos de solidão, de García Márquez. O turbilhão de vendas foi atribuído à poderosa influencer e escritora norte-americana Courtney Henning Novak.

A mulher disse no Tik Tok que a leitura do livro do bruxo do Cosme Velho, vertido para o inglês por Flora Thompson-DeVeaux, apresentava-lhe três problemas. Se eu lembro bem, os problemas seriam os seguintes: O primeiro é que a edição em suas mãos só tinha 300 páginas; acrescentou que restavam apenas 100 para terminar a leitura e indagou o que ela ia fazer da vida dela depois que acabasse de ler o livro? O segundo é que ela estava aflita para saber como, só agora, apresentaram a ela o melhor livro do mundo. E o terceiro é que agora ela ia ter que aprender português para ler Machado de Assis no original. A corrida às livrarias dos Estados Unidos foi imediata.

Muitos anos antes, no verão norte-americano de 1989, não uma tik-toker, mas, sim, Susan Sontag, uma das maiores pensadoras e críticas literárias do planeta, confessou a mim, em sua primeira entrevista para jornais brasileiros (Jornal do Brasil e O Liberal), que naquele momento estava escrevendo um ensaio sobre Machado de Assis e disse que considerava Machado de Assis o maior romancista da América Latina e que seria um clássico universal se tivesse escrito na língua inglesa ou francesa. O Jornal do Brasil chamou a matéria na capa e mancheteou na página inteira: “Provocadora, radical e machadiana”. O editor de O Liberal, de Belém, Claudio Sá Leal, publicou a matéria na íntegra nas páginas inteiras de capa do caderno de cultura durante 3 dias seguidos.

Naquele mesmo verão, Woody Allen, com quem também estive brevemente em Nova York, durante uma noite em que sua jazz band se apresentava no Michael’s Pub, ao ser indagado por mim se conhecia algo da literatura brasileira, disse-me que conhecia Brás Cubas, de Machado de Assis e que o considerava um dos melhores livros que havia lido. Muitos anos depois, em uma entrevista para o jornal inglês The Guardian, Allen disse que ficou chocado com o fato de Machado ter vivido tanto tempo atrás. “Você pensaria que ele escreveu o livro ontem”, afirmou. “[Brás Cubas] Acionou um alarme em mim do mesmo modo que O apanhador no campo de centeio… “Fiquei chocado com o charme e o divertimento do livro..” “… É um dos meus cinco livros favoritos”.

No ano seguinte, em 1990, quando Susan Sontag publicou o seu ensaio sobre as Memórias póstumas de Brás Cubas e Machado de Assis, o chefe de A Província do Pará, o jornalista Roberto Jares Martins, sugeriu a mim que escrevesse um artigo sobre o ensaio de Susan Sontag para o seu jornal. Quando leu o texto, propôs que eu entrevistasse alguns intelectuais de Belém, pedindo-lhes uma comparação entre Machado e Euclides da Cunha, que ele considerava os dois gigantes da literatura brasileira de todos os tempos. Esse material está acrescentado ao final do artigo que segue.

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O jogo de espelhos: Susan Sontag & Machado de Assis

Finalmente, após um ano de expectativas, Susan Sontag, a radical e efervescente pensadora americana, concluiu e publicou na revista New Yorker do começo de maio passado o ensaio Afterlives: the case of Machado de Assis, onde analisa a obra e o estilo daquele que, para alguns, disputa com Euclides da Cunha o título de maior escritor brasileiro.

O ensaio de Sontag que, após comentários de Paulo Francis na imprensa brasileira, ganhou tradução no caderno “Letras” da Folha de S. Paulo (09/06/90), coincide com o lançamento no Brasil do seu primeiro romance, publicado nos Estados Unidos em 1963 – The benefactor.

Oportuna “coincidência”, como se verá mais adiante. Na verdade, The benefactor – no Brasil, O benfeitor – está sendo lançado ao mesmo tempo em que a reedição americana de Memórias póstumas de Brás Cubas, de Machado de Assis, cujo prefácio é – adivinhem – o mesmo ensaio publicado na New Yorker a que me referi. Portanto, trata-se apenas de uma velha quadrinha drummoniana: Susan que ama Machado que ama Sterne que ama Xavier que ama Voltaire etc. etc..

A referência aos “poetas mortos” Laurence Sterne (1713 – 1768), Xavier de Maistre (1763 – 1852), Voltaire (1694 – 1778) também não é gratuita porque – outra coincidência – todos influenciaram Machado de Assis e – 83 anos depois – Susan Sontag, quando estes se movimentavam para além e por sobre a modernidade, tanto no final do século XIX (Machado) quanto no começo da nossa igualmente conturbada década de 1960 (Sontag).

Sontag confessou-me em entrevista publicada pouco menos de um ano atrás (quando, aliás, anunciou-se machadiana inflamada), que gostava de pensar que recebia influência de Ralph Emerson, o escritor americano do séc. XIX. Mas, no caso de O benfeitor admitiu, com honestidade, que se já conhecesse Machado de Assis teria, com certeza, se influenciado fortemente pelo brasileiro, por quem revelou, como é de seu estilo, admiração radical afirmando, categórica, que se Machado escrevesse em inglês seria um clássico universal.

Paulo Francis, quando registrou na Folha de S. Paulo a publicação do ensaio de Susan Sontag em Nova York, supôs que o encanto radical da americana por Machado talvez derivasse do seu provável escasso conhecimento sobre Euclides da Cunha. A par de reacender uma antiga competição entre os euclidianos e machadianos, Francis, embora não tenha sido categórico, equivocou-se. Acontece. Sontag já conhecia, e bem, a obra de Euclides. Mais ainda: em seu livro Ensaio sobre a fotografia (1977) transcreveu textualmente um parágrafo completo de Os sertões, que nos Estados Unidos, onde jamais recebeu a atenção merecida, foi traduzido como Revolt in the Back Lands.

Voltando, entretanto, às “coincidências”: não estranha que Sontag se desdobre em elogios a Machado de Assis e particularmente a Brás Cubas porque, a despeito da insuperável qualidade da escritura de Machado de Assis, Sontag (eu cito: “tampouco faço objeção ao pedantismo”) tem a rara oportunidade de, por reflexo, discorrer sobre sua própria obra, pois a estrutura, a influência, o recurso à ironia e metáfora de uma vida no ponto futuro é, em quase tudo, semelhante à obra do brasileiro que produziu, ainda segundo Susan, a mais densa, instigante e melhor literatura do continente sul-americano, escrevendo em português contra todos os “monstros” que escreveram em espanhol: Jorge Luís Borges, Gabriel García Márquez, Júlio Cortázar, Mário Vargas Llosa, Roberto Bolaño e Ernesto Sábato incluídos.

Afora as dúvidas quanto à necessidade de uma polêmica escritora americana registrar a excelência da literatura brasileira na transição do séc. XIX para o séc. XX, resta de qualquer modo reconhecer que a autoridade e a opinião de Sontag nos meios pensantes pode se constituir em valiosa contribuição para enriquecer o vagaroso debate literário no continente sul-americano. Susan Sontag, afinal, fez-se respeitar pela franqueza e quase agressiva honestidade intelectual aliada a uma indiscutível elegância e originalidade verbal na abordagem de temas tão atuais quanto controversos. Seus provocantes ensaios sobre fotografia, pornografia, cinema, literatura e comportamento social estabeleceram referências definitivas com as marcas da modernidade e da ousadia em um ambiente intelectual não raro conservador e mesmo preconceituoso.

Voltando, porém, mais uma vez, à corrente principal deste artigo, retomo o raciocínio que conduz ao jogo de espelhos entre O benfeitor” e Brás Cubas. O exercício de tal jogo revela que, na mesma linha de Sterne, inaugurada em Tristam Shandy, tanto Machado quanto Sontag, valendo-se de esplendorosa fantasia, que descarregam nos personagens, retrojetam sua narrativa de um ponto situado no futuro fictício (como é o caso de O benfeitor) ou mesmo após a morte (como é o caso de Brás Cubas). Tudo, porém, sob questionamento permanente dos autores que, num contraponto fascinante, ancoram os delírios dos personagens no seu próprio agudo e cético sentido do real.

Quem já teve o privilégio de atravessar o mais brilhante trabalho jamais escrito sobre a obra realista de Machado de Assis, que é A pirâmide e o trapézio, de Raimundo Faoro, onde se analisa sociologicamente todo o final do Segundo Reinado através da ficção machadiana, sabe perfeitamente que a fantasia estava solidamente contraposta à brutalidade do jogo social disfarçado em aparentes conflitos e paixões individuais.

Do mesmo modo, em Sontag, é quase impossível dissociar sua ficção de sua análise crítica e filosófica. Sem jamais renunciar à paixão, a americana sempre perseguiu, com êxito, sobrepor-se às tendências de ocasião. No verdadeiro caleidoscópio dos anos 60, onde despontou afirmativa e lúcida, tornou-se uma potente e temida metralhadora giratória contra o conformismo e a estagnação, pela sólida construção teórica a favor dos movimentos de liberação e inquietude, à frente Jean Paul Sartre e Herbert Marcuse (deste foi aluna e amiga íntima). Basta lembrar, em reforço de sua permanente disposição para pensar com distanciamento crítico que, após sofrer um câncer no seio, resultante em uma mastectomia, produziu uma das mais originais reflexões sobre a doença, em A doença como metáfora, desdobrada agora (1989) em AIDS e suas metáforas, que simplesmente anulam qualquer consideração filosófica séria sobre as doenças se não forem consultados como referência. Chega?

Quanto a Machado de Assis, a própria Susan Sontag, em seu ensaio, formula intrigantes considerações sobre o animus e a ética dos escritores que se autobiografam. Diz, por exemplo, que por mais próximo que a idade possa levar o autobiografado ao ponto de observação ideal, ele ainda estará do lado errado da fronteira além da qual a história de uma vida acaba fazendo sentido”; e que a única experiência bem sucedida de autobiografia imaginária que conhece é Brás Cubas; acrescenta que “escrever sobre si mesmo, contar a história verdadeira – ou seja, particular – costumava ser algo presunçoso e não necessitava justificação”, mas lembra de que grandes clássicos da autobiografia (Ensaios, de Montaigne; As Confissões, de Rousseau; e Walden, de Thoreau) trazem um prólogo, em que o autor se dirige diretamente ao leitor, reconhecendo a temeridade do empreendimento, evocando escrúpulos e inibições que tiveram que ser superadas, alegando muitas vezes a utilidade que teria, para os outros, toda essa preocupação consigo mesmo.

Sontag registra ainda, com a originalidade de seu estilo peculiar, que o romance como exercício de imaginação da velhice é uma“aventura a que são atraídos os escritores de temperamento melancólico”. Eis aqui, mais uma vez, o jogo de espelhos. Sontag aproximava-se dos trinta anos quando escreveu e publicou O benfeitor, tratando das reminiscências de um homem no início dos seus 60 anos que, considerando encerrada toda sua existência, pode olhar para a vida passada. Haveria melancolia maior do que uma jovem e irrequieta escritora projetar-se num sexagenário e refletir sobre seu passado?

Concluindo seu parecer sobre Brás Cubas, Sontag assinala que, com o tempo, um grande livro encontra seu lugar certo e que talvez alguns livros tenham que ser redescobertos diversas vezes por marcar os leitores com a força de um achado particular [exatamente o que ocorreu com a tik-toker Courtney Novak].  Arremata afirmando que “com toda certeza Memórias Póstumas de Brás Cubas é um dos mais divertidos livros não-provincianos jamais escritos. Gostar desse livro é tornar-se um pouco menos provinciano em relação à sua própria literatura”.

Em verdade, como é fácil constatar, a tarefa de desvendar o intricado e inesgotável jogo de espelhos entre Susan e Machado exige fôlego e talento superiores. Assim parecido com um Benedito Nunes, que bem poderia produzir algo como o “Dorso do Tigre II” só para satisfazer o ampliado público machadiano, agora esplendidamente reforçado pelo furacão Susan Sontag.    

(Publicado em A Província do Pará, em 02 de julho de 1990, Segundo Caderno.)

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Post-scriptum:

Para terminar quero dizer que o jogo de espelhos entre Susan Sontag e Machado de Assis não termina aqui. No melhor romance da norte-americana, O amante do vulcão, em seu final, Sontag, faz os seus personagens já mortos, tal como Machado fez em 1880 com Brás Cubas, escreverem brevemente sobre suas vidas trágicas. Detalhe: Ela escreveria o seu romance em 1990, lançado no ano seguinte, imediatamente depois do ensaio que escreveu sobre Machado de Assis.

Eis, em seguida, os depoimentos de Francisco Mendes, Lúcio Flávio Pinto, Acyr Castro, Machado Coelho e Otavio Mendonça sobre Machado de Assis e Euclides da Cunha:

Quem é melhor: Machado ou Euclides?

  • Francisco Mendes (professor, ensaísta, crítico): São incomparáveis porque de gêneros diferentes. Prefiro o criador máximo que é Machado de Assis, embora admire a visão do brasileiro Euclides da Cunha. Quanto ao estilo também fico com Machado, que é permanente. Quanto ao estilo de Euclides, depois do Modernismo, entendo superado. Machado criou a Academia, mas não foi acadêmico no estilo. O que é forte no Euclides é a visão do homem integrado no seu ambiente.
  • Lúcio Flávio Pinto (jornalista, sociólogo, escritor): Os dois são geniais, Machado nunca escreveria Os sertões e Euclides jamais seria um observador na “torre de marfim”. O temperamento pessoal de Euclides o impediu de realizar sua maior obra – melhor ainda que Os sertões – que seria sobre a Amazônia. O primeiro capítulo de Os sertões – A Terra – é a descrição mais brilhante sobre a paisagem, a natureza, o ambiente jamais escrita na literatura mundial. É o produto magistral de fusão única do gênio do escritor com o conhecimento do engenheiro. Euclides escreveria o grande livro, que não temos, sobre a Amazônia.
  • Acyr Castro (jornalista, escritor e crítico): Sou machadiano. Ele é todo moderno. Sua obra é irretocável. Entendo que Euclides tem o estilo datado, embora simbolize toda uma época. Quanto a Machado, parece que saiu do forno agora. Não dá pra cortar nada. Acho Euclides genial, mas prefiro Machado que anteviu o homem moderno dividido e multifacetado. Com Euclides, você tem que enfrentar a chamada “sétima página” a que se referiu Monteiro Lobato.
  • Machado Coelho (professor, ensaísta e crítico): Apesar de Os sertões, de Euclides da Cunha, prefiro Machado de Assis, porque foi mais escritor, no sentido literal, e dono da mais fina ironia. Tenho Machado como o maior escritor brasileiro, um grande poeta e crítico admirável. Tudo sem perder a serenidade e sem hostilizar ninguém. É uma comparação difícil.
  • Otavio Mendonça (jurista, professor e ensaísta): Eu ficaria com Euclides porque é diferente de todos, o que não quer dizer que seja superior a Machado. Euclides voltou-se para natureza, um pesquisador, um viajante. Era dono de um estilo forte, inesperado e arrebatador. Machado era um exímio bordador da psicologia humana, um introspectivo que não saia do Cosme Velho. São ambos geniais e incomparáveis. Basta ler, de Euclides, o primeiro trecho do 2º. Capítulo de Os sertões, e de Machado, o delírio de Brás Cubas no início das “Memórias Póstumas…”

Francisco Rohan de Lima é advogado no Rio de Janeiro, autor de A razão societária (Renovar, 2015), de ensaios jurídicos, e de O jornalista acidental – memórias afetivas (Catalivros, 2024). Esse texto foi publicado originalmente no blog do sociólogo e jornalista Lucio Flavio Pinto

O livro Memórias Póstumas de Brás Cubas, de Machado de Assis, foi publicado pela Companhia das Letras

2 comentários

  1. Sou suspeito. Fã de Francisco Rohan é de Machado de Assis, não necessariamente nessa ordem. Um texto primoroso e absolutamente oportuno.

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