Clube dos Escritores 50 mais Zulmara Salvador Sonata

#autoraconvidada
Zulmara Salvador
SONATA

Eu distribuo um segredo/como quem ama ou sorri.
No jeito mais natural/dois carinhos se procuram.

Carlos Drummond de Andrade

De tão curvado, parece uma vírgula ao contrário, coisa da qual não se dá conta, é claro. Pouco lê, quase não escreve. Uma vírgula nada significa para ele, além de ser um mosquito enfiado entre as palavras das revistas que folheia no carro, ao lado do pai. Mas se assemelham, ele e a vírgula, não só no aspecto físico: ele fala sempre entremeando pausas, que fazem seus raros interlocutores enervarem-se esperando, inquietos, a próxima sentença. É que pensa lentamente, então, fala como se fosse um gago, pelejando entre vírgulas, e ponto e vírgulas, a conclusão de suas ideias fugidias e imprecisas.

Em criança a mãe foi ensinando letras, formas, cores, palavras que somente veio a pronunciar pelos seis ou sete anos de idade, mas encantava-se com a música. Seus olhos brilhavam quando a mãe ligava o rádio e saiam de lá os sons de pianos, oboés, violinos… Já o pai insistia que tivesse atividade. Então chegaram a um acordo: compraram uma vitrola, discos e, depois dos treze anos, o pai passou a levá-lo à farmácia todos os dias, onde veste seu impecável jaleco branco e se posta à porta para receber os clientes, sempre sorridente, amigável, curvado como uma vírgula. Nunca se deu conta do estranhamento no olhar das pessoas e continua dizendo alegremente: “bom dia, pois não?” e indicando o balcão de atendimento, com muita gentileza.

Desde sua chegada, há bastante tempo, os demais funcionários entediam-se um pouco, pois só se toca música clássica. Foi o que me fez frequentar, exclusivamente, essa farmácia.

O conheci ainda jovenzinho, talvez aos seus quinze ou dezesseis anos, sempre bem-humorado, diante da porta a receber clientes desagradáveis, que se desviam dele, indo direto ao balcão. Ao entrar me disse: “bom dia, pois não?” Notei seu corpo encurvado, seu sorriso simpático e lhe estendi a mão: “bom dia. Preciso de aspirinas.” “Aqui, aqui. Aqui, aqui.” E não largando minha mão, indicou-me a prateleira. Tocava uma sonata. Parei e levantei a cabeça, como que procurando pela música. Ele notou. Também parou, e me disse: “Chopin.” O pai sorriu atrás do balcão de atendimento.

Com o tempo, e a idade, a gente vai precisando mais do que de aspirinas e, assim, segui visitando meu amigo quase todos os dias, com a desculpa de um comprimido, um unguento… Fui aprendendo a compreender suas pausas, vírgulas e ponto e vírgulas, e trocamos impressões, sempre num tempo largo, sem apressamentos, sobre as músicas e os remédios. Ele sabe onde se encontra cada analgésico, cada xarope expectorante, cada pastilha estomacal, gaze, gel, sabonete: “aqui, aqui.” E buscamos juntos, de olhos meio cerrados, identificar a música que toca.

Meu estoque de remédios está fenomenal. Procuro urgentemente um posto para doação, antes que percam a validade.

30 comentários

  1. Lindo conto, sensível, emocionante. Parabéns, Zulmara. Esta é mais uma prova de seu talento e trabalho competente. Que siga nos brindando com mais pérolas como esta.

  2. Zulmara,

    Gostei imensamente do seu texto musical. Lúdico, digno de um farmacêutico delicado para com as dores alheias, mesmo se curáveis apenas com
    aspirinas.
    Lembrou-me, como uma imagem, uma farmácia do Brasil fundo. Será o povo, um virgula, um ponto, um travessão apenas!

    Nota: conheço muito a Marcia M. Oliveira. Só boas lembranças dela!

  3. Oi Roseli.. Obrigada pelo comentário. Acompanhe o site do Clube. Tem textos muitos legais aqui, desse pessoal que não larga a juventude e a animação, depois do 50!!

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