Blanche de Bonneval O armário de tia Louise

#autoraconvidada
Blanche de Bonneval e o armário de tia Louise

Eu era muito amiga de Luciara, uma colega angolana do serviço e frequentava muito a sua casa na qual morava com a tia, Leontina. A tia era uma exímia cozinheira e, além de comer os seus deliciosos pratos, eu também lá ia para aprender a cozinhar pratos angolanos e ensinar a ela o preparo de pratos brasileiros.

Naquele dia, tia Leontina, vestida com roupa tradicional e um impressionante turbante, me recebeu na sua casa com a costumeira alegria. Logo colocou o quindim que eu lhe trazia de presente na mesa e me empurrou para a cozinha onde estava preparando um calulú (prato com legumes, peixe seco e fresco,
gindungo (pimenta vermelha) e óleo de palma).

O telefone tocou e ela foi atender. Começou então a discutir animadamente com quem a chamava. Entendi que no fim de semana seguinte, viria à sua casa um grupo de moças para fazer a sua iniciação.

Quando minha anfitriã desligou, notou o meu olhar surpreso. Pois é, disse ela, caindo na gargalhada. A iniciação que dou às moças é uma iniciação para a vida. Daqui a pouco vão se casar e precisam saber algumas coisas para serem boas esposas, mães e donas de casa. Imagino que no Brasil, nas famílias tradicionais como a sua, o primeiro assunto é tabu.

Posso lhe perguntar no que consiste tal iniciação para a vida?

A iniciação que dou é um curso completo para que as moças deixem suas potencialidades desabrocharem sem complexos no casamento e usem todos os seus recursos femininos com beleza e sabedoria, inclusive para ter uma vida sexual plena e feliz.

Mas isso, além de ser sábio, é muito interessante, respondi. Nas nossas sociedades ocidentais, a religião e a tradição são muito opressivas, há muito desconhecimento, muito preconceito. Gostaria de poder participar de um destes cursos. Como você tão bem disse, a minha família é exatamente do tipo que você descreveu: tudo o que se referia a sexo em casa era tratado com vergonha e esperava-se que as moças se entendessem com seus maridos durante a famosa noite de núpcias. A este propósito, quero lhe contar uma história, que nos fez rir a todos por gerações.

Na propriedade dos meus pais, em Belvès Val d´Or, sudoeste da França, tem um corredor onde há um grande armário chamado o armário da tia Louise. Quando eu era menina e perguntava a razão do nome, todos riam meio sem jeito e desconversavam. Até que, quando me tornei adulta e perguntei novamente a respeito, contaram-me a história.

Louise de Castillon-la-Bataille era uma das minhas tias-avós que imortalizou aquele móvel. Quando tinha 15 anos, foi casada com o herdeiro do ramo primogênito da minha família que tinha muitas posses e influência. Resolveu-se que no dia do casamento, o casal, assim como a família Castillon-la-Bataille,
passariam todos a noite em Belvès para celebrar as bodas com uma grande festa. No dia seguinte, os jovens viajariam em lua de mel e os pais e parentes de Louise voltariam para suas terras que eram bem distantes dali. Assim, depois de comemorar condignamente as núpcias dos jovens, as duas famílias, esgotadas, foram dormir com a sensação do dever cumprido.

Estavam todos pegando no sono quando ouviram gritos de terror no corredor. Foram ver o que estava acontecendo e encontraram Louise, de camisola, encarapitada em cima do armário, gritando, apavorada, com o marido tentando convencê-la a descer dali. A família toda foi se informar sobre o tinha acontecido e Louise, chorando desesperada, dava sua versão, do alto do móvel, enquanto que o rapaz, lá no chão, dava a sua.

O caso era o seguinte: o rapaz, jovem e bonito, era excepcionalmente bem dotado pela natureza e quando Louise o viu aproximar-se dela sem roupa, tão bem armado e com modos tão alterados, levou o susto de sua vida e fugiu. Se você visse a altura do armário, entenderia o quanto ela estava assustada para
poder dar um pulo daqueles. A família levou um tempão para convencer a moça a descer do seu refúgio.

Depois, os representantes varões das duas famílias levaram o moço para uma conversa num dos quartos, enquanto as mulheres levavam Louise para outro para lhe dar algumas explicações sobre o que devia acontecer com o casal naquela noite. Louise, depois desta aventura, acabou sendo muito feliz com seu marido por vários anos, até que contraiu uma pneumonia e morreu cedo.

Teria gostado de conhecê-la pois parecia ter se tornado uma senhora mulher. Cada vez que eu passava na frente do armário que ela imortalizou, pensava nela. Se ela tivesse tido uma iniciação do tipo daquelas que você dá, nada disso teria acontecido.

Leontina deu risada, mas também ficou com pena da jovem Louise. Bem, disse ela, ficando séria novamente, posso lhe dar um cursinho particular porque gosto de você e que se dá tão bem com Luciara. Mas não recomendo que venha fazer a iniciação com as outras meninas no sábado que vem. Elas acabariam se divertindo às suas custas e comentando com gente de fora que você estava presente num curso destes.

Então você poderia vir aqui três vezes por semana, dentro de quinze dias para que eu lhe dê esta iniciação. É muito importante adquirir este conhecimento para se ter uma vida feliz. As pessoas sabem que gostamos as duas de preparar juntas comida angolana e brasileira, portanto ninguém estranharia em
vê-la vindo em casa com certa regularidade. E também poderia tirar as suas dúvidas sobre os temperos necessários para realçar o sabor da quizaca (prato com folha de mandioca cozida como se fosse couve) de que tanto gosta.

Quando comentei minha decisão com Daphne, a minha chefe no escritório, que também era uma boa amiga, ficou escandalizada:

Você é mesmo impossível! O que quer fazer com este conhecimento? Vai querer abrir uma casa de tolerância.? Imagina o que as pessoas vão dizer se esta informação cair na boca do povo. Você já é muito falada aqui por ir dançar com tanta frequência e conviver com tanta proximidade com angolanos e
cubanos!

Fiquei quieta e olhei para minha amiga com uma certa decepção: Não Daphne, não pretendo abrir um bordel. Aliás para abrir um negócio destes nem precisaria saber o que Leontina vai me ensinar. Mas me espanta muito a sua reação. Esta iniciação é muito necessária e não pode ser associada a prostituição. Você está sendo preconceituosa. Quanto mais conhecimentos adquirirmos sobre determinado assunto, melhor poderemos fazer nossas escolhas e isso inclui sexo. Minha família tinha uma visão muito estreita sobre este assunto e imagino que a sua também. Acho que está mais do que na hora de eu poder perguntar tudo o que sempre quis saber neste campo a alguém que tem todas as respostas.

E sem esperar a resposta de Daphne, ri e completei: na verdade, eu quero apenas ser feliz.

Daphne não soube o que responder e chocada, mudou de assunto.

E na data prevista, fui à casa de Leontina para começar a ter as minhas aulas de “cozinha angolana”. Quando chegamos no fim da iniciação, eu só podia agradecer a minha mestra.

Mas ainda estava curiosa sobre um aspecto.

Ó Leontina, me responda uma última questão. Como pode você ter tamanho conhecimento sobre este assunto? Precisaria de muitas vidas para saber tudo isso.

Ela sorriu: você até que não se enganou tanto assim na sua colocação. No meu grupo tribal, este conhecimento é aprimorado pelas tias – que são mulheres como eu, que dão estas iniciações às moças. E algumas destas mulheres que resolvem exercer esta função, vão, por sua vez, acrescentar a sua própria experiência aos ensinamentos que vão transmitir. É, portanto, um conhecimento milenar que é passado através das gerações e aprimorado com muita sabedoria. E saiba que esta mesma iniciação é também feita para os rapazes pelos tios.

3 comentários

  1. Muito interessante o texto! Gostei muito! Gostaria ter passado por essa iniciação. Na minha casa não se falava de sexo. Aprendíamos com as amigas e com as empregadas. A maior parte das vezes eram informações truncadas, enviesadas ou inventadas!
    Parabéns Blanche

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