Há quem o julgue um andante devaneando, um qualquer. Aparenta andar sem objetivo e direção. Mas, engana-se quem o assim classifica, tanto em português quanto em francês.
O andante busca um destino surpresa pegando uma ruazinha ou picada qualquer, sempre aberto para imprevistas impressões da vida em ação.
Neste caminhar , aparentemente, sem eira nem beira, acompanha-o uma aura de quem não está fazendo nada porque para, segue, senta, escuta, observa .
Este andante pode ser qualquer pessoa na escala social e financeira. Não é necessariamente um escritor ou pintor em busca de um tema, um romântico ou um apaixonado. Novamente engana-se quem o observa!
O andante anota seus sentidos que o eletrocutam com sensações e imagens que se avolumam em um fichário sem papel, recuperáveis a qualquer momento que desejar. Ele trabalha enquanto “não faz nada”.
Sem um compromisso para atender ou objetivo para buscar, sua produção são as emoções transformáveis em lembranças que emergirão ou não quando sentir saudades da experiência de ter vivido o estado de estar no mundo!
Alimenta sua necessidade com o ineditismo captado nas margens da rua: uma tampa de esgoto na calçada, uma vitrine com um vidro trincado, um homem tocando sanfona na esquina ou um pedinte para quem joga uma moeda triste, um piar de pássaro, uma flor murcha. O seu tempo não marca horas; ele borda, na sua túnica branca, em cadência desigual, emoções invisíveis. Às vezes borda com linha colorida, às vezes com linha escuras.
Este personagem é o flâneur, ( uma palavra, como tantas outras de uso brasileiro importada da língua francesa). Em tradução livre seria um andarilho ocupado.
Também uma palavra francesa, cujo domínio é a cidade de Paris, é o clochard, um andarilho por opção , que apesar de não ter moradia fixa, chega com uma aura simpática e caricatural. Ele também vagueia pelas ruas assim como o flâneur, ambas imagens românticas e poéticas bem ao contrário do nosso pobre sem teto.
Estes dois personagem parecem preencher o vazio do nosso imaginário: o estranho sentimento de estar vivo condizente com a linha do tempo e o espaço que ocupamos na vida. Imagino que as sensações inúteis não são percebidas. Como figuras literárias parecem querer tecer fios afetivos com o universo que os rodeia.
Hoje andei flanando pelas ruas do meu bairro. Ouvi conversa alheia no cabeleireiro, comi uma fatia de mortadela e comentários sobre receitas naturais.
No cabeleireiro, prestei atenção na senhora que pintava o cabelo de ruivo conversando com outra que fazia manicure. Trocavam opinião sobre a novela que acabara no dia anterior sendo que a futura ruiva emendou não estar feliz com sua vida de divorciada. Na padaria, a conversa foi entre uma senhora de idade e o cortador de frios. Discutiam as várias marcas de presunto, mortadelas e perus. Se produtos italianos eram mais saborosos do que os brasileiros enquanto o funcionário a presenteava com fatias generosas de cada espécie e serviu-me uma para tirar a dúvida. A senhora contou que morava sozinha e só se alimentava bem no almoço porque na idade dela jantar fazia mal.
Na confeitaria, doce e cafezinho puxam conversa e a dona, sem outro freguês para servir, contou-me sobre os ingredientes das suas tortas doces e salgadas . Agradeci e sai incomodada com a intrusão da doceira rompendo o meu silêncio não desejoso de ouvir sobre suas receitas naturais.
As impressões armazenadas desta manhã ocultaram-se no fichário, elas voltarão assim que as chamar para compor uma nova crônica de rua.
O dia tinha se destinado só a ir ao cabeleireiro. A mortadela e a torta foram as surpresas do andar sem destino.
Foi um dia no qual gravei a sensação de ser igual a todos no mundo, dividindo micro histórias de um grande quarteirão, o sol primaveril entrecortando formas nas calçadas através das galhadas das árvores. Continuei flanando por entre sombras e claridades de um horizonte com fim.
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BETTINA LENCI – Uma empresária que se realizou tendo como início profissional a história da arte e a fotografia, mas que, posteriormente, descobriu que lendo e escrevendo é possível criar um mundo com um olhar agudo sobre o cotidiano de todos nós.
Uau! Eis a posição dos psicanalistas no consultório! De escuta flutuante! Caminhar a esmo, ao léu, ao sabor dos acasos… Sem mapa ou guia da cidade. É meu assunto predileto! [até porque é a mesma posição do artista criador – conforme diz Bettina!]. Great!