Ela sempre tira bife. Lindaura chegou a mexer os lábios para reclamar. Paciência. A outra manicure fazia pior. Era só ficar sozinha um minuto e se punha a bisbilhotar bolsa, gaveta, tudo que encontrasse pela frente.
Precisava das unhas apresentáveis no jantar. Mesmo com pouca gente e na miséria em que estava a vida na pandemia, alguém ia reparar.
Olhou para o sofá. As pernas do menino não estavam mais lá balançando sem alcançar o chão. Agora tinha que olhar o filho da empregada. Pior seria ter que levar o cachorro para passear, recolher cocô, pegar cartas na portaria. Se pelo menos o moleque parasse quieto. Para ter a empregada, tinha que aturar o pirralho. As outras ajudantes andavam faltando. Um homem com cargo público importante como seu marido não pode ter a casa bagunçada.
O menino desligou a televisão. Sozinho. Já sabe mexer no controle.
Voltou o olhar para a manicure.
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Vai ser a cor de sempre?
A moça esquentou entre as mãos o vidro vermelho escuro. Passava o pincel com firmeza.
O menino andava pela sala.
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Onde você vai? Liga a TV de novo.
Ele resvalou na cadeira dela.
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Borrou?
Assim não vai dar. Precisava estar perfeita à noite. Às vezes fingia um certo enfado com os paparicos dos convidados mas percebia como os olhares se detinham nos detalhes da vida da família. Depois das refeições, soltavam frases entrecortadas fazendo armações que ela não entendia, mas jamais ousaria interromper para perguntar.
O menino se pendurou na maçaneta da porta.
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Sair não pode. Fica aqui que a sua mãe foi na portaria e já vem.
Ele não olhou para ela.
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Querida, pode dar uma paradinha?
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Terminando esse dedo.
Hoje o jantar era com construtores. Só homens. Ela, altiva, esvoaçando pela sala no vestido azul de decote nas costas, escova nos cabelos, informando a safra do vinho que já tinha separado, pousando a mão no ombro do marido quando alguém lhe perguntava alguma coisa. Iam reparar nas suas unhas.
Ouviu o rangido do elevador. O menino alcançava a porta. Já estava lá dentro.
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Sai daí.
Ele balançava a cabeça olhando para o chão.
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Por favor, sai daí – ela sabia pedir com jeitinho. ─
Sai daí já!, estou mandando – mas podia endurecer, o que fazia o menino balançar ainda mais forte sempre olhando para baixo.
A mão com unhas vermelhas já estava quase alcançando o braço fino quando ele deu um puxão. Que peste de menino. Borrou.
Examinou o borrão quando a porta do elevador fechou.
Mas ele vai voltar. Você conserta o borrão? Dá tempo? A manicure se agitava na cadeira quando a empregada voltou. O cachorro correu pela sala. A correspondência na mesa lateral. O menino, cadê o menino?
A manicure consultou o relógio do celular: 9h30. Outro cliente esperava por ela. O interfone tocou. O menino caiu. Um grito na cozinha. Consertou a unha? Como seria a noite? O menino ensanguentado. Não respira. Alguém chama o Samu? A empregada correndo na escadaria. Lindaura com náusea no elevador social. Via a guarita do prédio e a rua girando. A mãe gritava por cima do corpo. A mãe apontava o dedo para Lindaura. Lindaura sem voz. Lindaura no escuro. Lindaura com unhas e dedos borrados que tremiam. A polícia isolando a área. O pano branco cobrindo o corpo. O frio de uma cela. Um chute, um puxão de cabelo. Alguém chama meu marido? Eu tentei, o borrão, menino teimoso. Tantas coisas, o jantar, a polícia. Não senhor, o menino não é meu não. A mãe está louca. Pare de gritar, pelo amor de Deus. Delegacia, não. Lindaura gira nos pés, os joelhos bambos amolecendo quando encosta no corpo do marido.
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Estou aqui, meu bem – ele olha o celular: 10h00 – o advogado já vai chegar. Lindaura pendura o queixo no ombro do homem, deixando as lágrimas e a saliva molharem seu paletó.
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O policial disse que faz meia hora que o menino caiu, mas só me ligaram agora – o marido segura os dedos macios.
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Já está tudo bem, meu bem. Já passou. Não foi nada.
Não foi nada. Deu tempo de consertar os borrões. Só precisava pensar no que serviria no jantar.
A hipérbole de mesquinharia, crueldade e cinismo é chocante. Nos exageros vemos o que nos por vezes nos escapa …
A vida pode ser miserável, depende do ponto de vista.
Sandra, muito bom. Nao há momento mais real para descrever um borrão de esmalte, pasme, vermelho!
Curto e grosso!
A tragédia é o borrão e nao o menino chato que morreu, por isso a historia é tão boa. Surpreende!
Grande final, sem choro nem vela! Sem tragédia a nao ser o bife que a manicure tira de nossas unhas tao bem cuidadas. No bife uma critica velada, idem nos costumeiros convidados que nao prestam atençao na gente, só nas uhas da anfitriã e fofocas. Tbm no marido, seguro e protetor, no jantar provavelmente já esquecido do incidente uma vez que foi ele quem o resolveu!
A mulher com sua unha borrada para sempre lembrará o dia a cada vez que borrar a unha novamente!
Gostei e gosto de seus textos.