Águas turvas,
reflexão triste de Lilian Kogan

A água escorre pela fina mangueira até o ralo do chuveiro. Uma banheira de bebê com o perfume de uma infância por vir é tudo que minha memória afetiva precisa agora.

Olho para o meu netinho, recém-nascido, saído do banho, e meu coração fica inundado de amor. Minhas lágrimas se confundem com a água que escorre pelo ralo.

Tenho sentido essa tristeza represada há quase um mês, desde que soube dos atentados em Israel. Fiquei sem chão. Fiquei apreensiva pelos meus parentes e amigos. Fiquei raivosa.

O ódio é um veneno que contamina tudo e, assim como o amor, sempre pega as partes pelo todo. Israel, para nós judeus, é a mãe, o colo, é a água do banho perfumado.

Em Tel-Aviv, quando saía à noite para alguma apresentação de ballet ou concerto, me chamava à atenção como as mulheres, na sua maioria jovens, descontraídas, alegres, pareciam saídas do banho, com os cabelos úmidos que não deu tempo de secar.

Hoje, só consigo associar essa água às lágrimas dos nossos antepassados sobreviventes do holocausto que, ao chegarem em Israel, transformaram a dor em adubo para fertilizar, no meio do deserto, um oásis onde fariam um lar.

Em 2018, quando estive em Israel procurando um trabalho que fizesse sentido a uma possível mudança temporária de país, um deles me tocou em especial: Women Wage Peace – Mulheres pela Paz. Conheci pessoalmente uma das fundadoras do projeto com quem tive um daqueles típicos cafés da manhã que são puro deleite em um hotel em Tel-Aviv.

Nessa agradável conversa, R. me contou sobre o início do grupo. Quatro mulheres se reuniram e sonharam com a possibilidade de mulheres árabes e judias trabalharem juntas. Como não tinham apoio algum, muito menos do primeiro-ministro que formalmente deixou claro não concordar com o projeto, resolveram da forma mais feminina que conhecemos: sentaram-se na frente da casa do primeiro-ministro em greve de fome, exigindo apoio governamental.

Depois de mais de um mês, a esposa dele veio conversar e elas não só conseguiram o apoio como tiveram proteção do governo.

No início, R. me contou que não eram respeitadas chegando a ser ameaçadas de morte por ambas as comunidades.

Na caminhada que fizemos em Jerusalém, era imensa a quantidade de carros nos escoltando. Ao cair da noite, éramos quatro mil mulheres sentadas num jardim sob um céu estrelado, profundamente emocionadas, ouvindo duas cantoras, uma árabe e uma judia.

Um dos projetos do Woman Wage Peace é o Piece of Peace. Pessoas de qualquer lugar do planeta podem enviar pedaços de tecido em um tamanho padronizado, customizado com algum símbolo relacionado à paz. A ideia é fazer um tapete da paz com retalhos do mundo todo por onde caminharemos de Israel à Palestina. Soube esses dias que uma das líderes desse movimento, uma senhora de mais de 75 anos, está sequestrada em Gaza.

Torço para que o Women Wage Peace consiga novamente colocar mulheres árabes e judias para cantarem juntas.

Espero um dia poder caminhar por esse tapete da paz ao lado de todas essas mulheres entoando um canto de esperança.

L.K.

20 comentários

  1. Lilian, depoimento comovente em momento de tanta dor e espanto. Tapetes de solidariedade poderão pavimentar crateras sangrentas? E, se não esperarmos, resta-nos o amargo desespero. Shalom

  2. Lilian,

    Poético e sonoro. Uma voz pacifica no deserto, mas, sem duvida, só possível uma paz se palestinos e israelenses
    encontrarem o caminho , conversando entre si com vozes e nao armas.
    Assisti ao filme, ontem mesmo, sobre a nadadora de 64 anos NYAD que atravessou, a nado, 103 milhas ( algo como 150km) da Florida para Cuba.
    Ela tentou , sob os mais angustiantes perigos que o mar pode entregar, 3 x , para chegar na quarta tentativa.
    Ela diz que o que a incentivou foi ,nao só superar a si mesma, mas demonstrar que EUA e Cuba poderiam fazer a travessia.
    Pensar que entre Israel e Gaza existem apenas 14km de distancia!!!

  3. “A ideia é fazer um tapete da paz com retalhos do mundo todo por onde caminharemos de Israel à Palestina” . Li seu texto e me vieram à mente os retalhos de nossos sonhos ingênuos de que seria possível viver em paz e em harmonia; os retalhos da nossa segurança de que o antissemitismo era passado. Acho que todos nós, que sempre achamos que o diálogo é possível e é o caminho, estamos retalhadas. Pessoalmente, quando vejo as imagens da UTI Neonatal em Gaza e dos bebês, que tanto lutamos no meu dia a dia , para dar um futuro morrerem por falta de eletricidade, meu coração fica dilacerado…, mas quando lembro de cada cena horrível de 07 de outubro e da tentativa de tantos grupos acabarem com nossa liberdade de sermos judeus, também me sinto dilacerada…. apenas reflexões evocadas pelo seu texto… Mil bjs

  4. Belíssimo taxto, Lilian.
    Já tinha ouvido falar deste acontecimento, tão humano, tão feminino.
    Oxalá, nós mulheres, consigamos trazer um pouco mais de amor e paz ao mundo.

  5. Minha amiga querida. Em meio a tanta dor e espanto pra nós ,judias de coração e mente abertas que sabemos que só há o caminho do amor que consiga construir essa PAZ , seu texto tão poético e belo é uma fresta de Luz ! Que as novas gerações consigam construir essa PAZ tão almejada. Shabbat Shalom 🌟🕯️🫶

  6. Frances, você que dança tanto pela paz, que une as mulheres para fortalecer a humanidade em rodas de pura beleza, sabe o que a união feminina pode fazer.
    Obrigada querida.
    Shabat Shalom 🕊️

  7. A força das mulheres, energia arquetípica da ternura e do amor. Agrega, acolhe, nutre, faz crescer, transcende e inclui as diferenças. Sempre são chamadas a entrarem em ação quando a força masculina, energia arquetípicas da ferocidade e da agressividade ameaça a harmonia do sistema. E quando parece que tudo está perdido e banhado no sangue da ira, na vingança, no ódio , chega o amor e vence🩷

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