A vendedora, de Carlos Schlesinger
(e uma recordação inesquecível)

O menino se fazia, às vezes, de telefonista da casa, no nicho existente no longo corredor. Ali, uma mesa aramada, com tampo de fórmica azul imitando mármore, sustentava o aparelho telefônico. Embaixo, duas prateleiras organizando os três catálogos telefônicos da CTB, Companhia Telefônica Brasileira. O de assinantes, grosso, trazia por sobrenomes todos os telefones do Estado da Guanabara. A cada ano, eram trocados por outros e a sua chegada era um acontecimento na casa. Novas cores de capa, novos textos de introdução, contando a história do Rio de Janeiro.

Mais contido, o catálogo de endereços era também menos popular; dificilmente alguém saberia o endereço de uma pessoa desconhecendo-lhe o sobrenome. Já as Páginas Amarelas se constituíam em um manancial de novas informações e possibilidades. Dividido por assuntos, o grosso volume alinhava empresas, fornecedores de produtos e serviços que iam de A a Z. Recheado de anúncios e figuras, proclamava a existência de vendedores de arame farpado, casimiras inglesas, goiabadas e automóveis. Tudo era informação nas páginas amarelas.

Inventadas em 1886 nos Estados Unidos, eram um padrão internacional, um conceito de marketing encontrado em muitos países. Um fascínio. E era sobre esses tijolos de folhas de papel aglutinadas que repousava o telefone de galalite preta, com um dial de metal e a ostentação de um disco de papelão protegido por fina capa transparente e seguro por um fio de metal. Ao centro, o dístico da Companhia Telefônica Brasileira e o número da linha, escrito à caneta.

Pois era nesse telefone que o menino exercitava seus incipientes talentos de atendente, que lhe proporcionariam, uma década depois, seu primeiro emprego. Atendia ao telefone ao lado do inefável caderno de telefones organizadíssimo, que era mantido na parte de baixo da mesa de fórmica azul, na grade aramada. Telefonavam o pai, o tio, a tia, a prima de todo dia. Telefonavam do jornal, telefonavam as amigas e amigos da família e às vezes, uma tal de D. Cecília.

A mãe do menino dirigia-se a ele usando o imperativo, hábito nordestino indeclinável. E nesse jargão, numa tarde talvez de sábado, determinou que descesse para buscar um queijo que D. Cecília trazia de presente. O menino atendeu, mais por tédio que por curiosidade, embora o nome do marido que lhe fora informado fosse insólito. Este sim, era um nome ou sobrenome que devia ser difícil de carregar. Grilo. Com quem se pareceria o Grilo, perguntou-se o menino, quando se aproximou o pomposo automóvel conduzindo sua carga: Grilo, D. Cecília e um queijo.

O carro parou e abrindo a janela lateral, alguém que lhe pareceu um ser angelical chamou-o pelo nome. Era D. Cecília, uma senhora de cabelos brancos e olhos azuis translúcidos que nunca esqueceria por sua vida. A voz, já a conhecia, do telefone, e chamando-o pelo nome, D . Cecília entregou-lhe o queijo, com as recomendações enviadas à família.

D. Cecília, estava desbaratado e entendido o mistério daquela personagem. Por um tempo que não pode precisar, o menino juntou voz e corpo, olhos e mãos generosas a ofertar o presente e a compreensão de que ela, D. Cecília, vendia queijos, talvez produzidos pelo Grilo. D. Cecília, a vendedora de queijos. Dona Cecília Meirelles.

7 comentários

  1. Delicioso conto que desvela o cotidiano afetivo da grande Cecília Meireles a partir dos olhos ingênuos de um menino, na sua missão fantasiosa de expert em catálogos e telefonista da casa! Bravo!

  2. As listras telefônicas eram um acontecimento! Muito pesadas para mim, facilmente as folhas, finíssimas, ficavam amassadas e de tanto uso, as capas acabavam se dobrando. O telefone de galalite preto, escandaloso no seu trinado. O menino, de atendente, treinando o futuro. Crônica deliciosa.
    E a dona Cecília, quem diria? vendedorea de queijos!!!
    Deliciosa sua crônica, Carlos.

  3. Lembrança inesquecivel a do peso das listas. Tive dificuldade em me desfazer delas achando que algum dia ainda iria precisar rsrss. Que gostoso saber que ela vendia queijos! Muito boa sua crônica.
    Tita

  4. AS LISTAS TELEFONICAS, HOJE, SAO DE MEMÓRIA NOSTÁLGICA.
    OUTRA LEMBRANÇA ERA TER QUE APRENDER O ABECEDÁRIO PARA ENTENDER SE O S VINHA ANTES OU DEPOIS DO R.; O MELHOR ERA DECLINAR DESDE O A PARA SABER! QUANDO POR FIM SE CHEGAVA NO S E PROCURAVA-SE PELO SOBRENOME DE SCHNEIDER POR EXEMPLO, , ACHADO O S, VOLTAVA A DIFICULDADE PARA SE PROCURAR O C DEPOIS O H PASSANDO, ANTES DE ENCONTRA-LO , POR SOBRENOMES TAIS COMO SALAMANDRA, SCHEIER , PERDER-SE ATÉ O SOBRENOME SCHOEN PARA FINALMENTE VOLTAR ATRAS UMA PÁGINA E ENCONTRAR O H. NA ÉPOCA ERA COMO SE APRENDIA, PRIMEIRAMENTE NAS LISTA TELEFONICA E DEPOIS ,COM MAIS FACILIDADE, NO DICIONÁRIO.
    O TELEFONE LÁ DE CASA ERA 316298 . TAMBÉM PRETO, TOCAVA SEMPRE IGUAL.,MAS RARAMENTE PARA MIM!

    UMA BOA CRONICA PUXA OUTRA E FOI ASSIM QUE ACABEI INSPIRADA NA SUA . GOSTEI MUITO TAMBÉM.! OBRIGADA

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