Naquela noite abaixou a escada que dava acesso à pequena estrutura em forma de torre no telhado que fazia às vezes de sótão e onde ficavam as caixas de água. Subiu com dificuldade. Chegou no topo. Fechou a tampa. Usou um tijolo solto no chão para quebrar o vidro sujo da claraboia. Enfiou-se na abertura. Não sentiu os cacos. Não viu o sangue nas telhas. Arquejando, exausta, sentou-se na face inclinada do telhado. E ficou.
Na manhã seguinte, algum vizinho mais atento viu a velha sentada imóvel no telhado. Avisou os filhos.
Eles foram chegando. Trouxeram esposas, marido, netos, cachorros, tralhas…Tentaram chamá-la, ameaçaram, mãe, que escândalo! Lá pelas tantas a filha esmurrou a mesa da sala de jantar: deixa! Houve uma calma, súbita, inesperada. Machucou a mão? Não, só está vermelho.
Os dias passaram, a família foi ficando. A mãe, no telhado, imóvel, amarronzando, os olhos presos em algum ponto ou em nenhum.
Os vizinhos, no início indignados, ameaçaram chamar a polícia, os bombeiros. Mas àquela altura, os quatro filhos da velha já estavam conformados: ninguém mexe na mãe! Os vizinhos resmungaram, foram embora, trancaram-se em suas casas…o mais pessimista plantou acintosamente na calçada bem em frente um ipê amarelo que um dia iria crescer e tapar aquela vista incômoda, mas foi só um, os demais limitaram-se a tirar algumas fotos, postaram nas redes sociais e afinal deletaram a casa de número 170 e seu telhado.
Não era um telhado muito inclinado. E ela relaxou quando viu que não precisava fazer força para permanecer sentada. Podia apenas pousar. Sentiu quando os filhos chegaram, quando se penduraram na abertura cheia de cacos de vidro da claraboia para tentar convencê-la a voltar para dentro, percebia sua presença barulhenta ocupando a casa debaixo de si.
Amava seus filhos com aquele amor onipotente que as mães sentem, eram seus filhos! Mas ultimamente não conseguia mais lembrar dos seus nomes. Em algum momento, eles haviam se tornado uma forma genérica de si mesmos, eram os meninos, a filha, os netos, os bisnetos. E há muitos anos não conseguia mais ouvir suas vozes. De tanto não ouvir, tinha perdido as palavras. Foi devagar emudecendo. Quando a família se reunia, parecia quieta, distraída, os filhos vinham, falavam com ela, ela sorria, os netos pequenos subiam no seu colo cada vez mais magro, os mais velhos passavam por ela e faziam carinhos desajeitados na sua cabeça, despenteando os cabelos brancos que ela depois não se preocupava em arrumar.
Ela não estava deprimida, nem ausente, e tinha dúvidas sobre se estava mesmo gagá. Incomodava o vazio que as palavras haviam deixado quando foram embora. Ali, no telhado, ela começou a ouvir outros sons. O assobio da maritaca, o canto do bem te vi, a música na casa, nas casas…o mais manso fiapo de vento ela reconhecia e recebia em si. Estavam no início de agosto, nunca chove em agosto. Mas o vento vinha sempre conversar com ela. Mexia nos seus cabelos, beijava sua boca, passava a língua macia no seu corpo. Às vezes doce como um perfume, às vezes exigente, voraz. Ela se apaixonou pelo vento e deixava que ele se alimentasse dela.
Foi ficando, não porque quisesse de fato, não por escolha, mas porque estava encantada pelas falas que o vento trazia.
Os filhos um dia pararam de discutir sobre a mãe. Subiam e conversavam com ela pela estreita abertura da claraboia; os cacos, um dos meninos, o mais novo, que era muito jeitoso, tinha dado um jeito de remover. Falavam de suas vidas, dos medos e dos sonhos que iam encontrando pelos cantos da casa. Contavam de descobertas e de segredos escondidos no fundo das gavetas. Lembravam de detalhes minúsculos do passado e riam, protegidos pelos ouvidos cegos da mãe. Depois desciam a escada sentindo-se estranhamente confortados. E nunca mencionavam essas conversas no telhado entre si.
Enquanto isso, ela minguava. Agosto estava no fim. O vento ficava mais quente e mais úmido.
Um dia sumiu. Os meninos choraram por trás dos óculos escuros, a filha chorou durante algumas noites, os netos não choraram, ninguém perguntou o porquê. Eram só crianças.
A casa guardou o choro dos adultos! Nenhum deles foi embora. Alguém sugeriu fechar a claraboia com tijolos. A filha disse um não sem argumentos, mas ninguém discutiu. A claraboia ficou lá. Aberta para o vento. Nunca venderam a casa. E ela foi amarronzando, como todas as casas velhas. Um dia, em agosto, o ipê amarelo do vizinho afinal cobriu a vista do telhado.
Que conto lindo [e triste – e delicado].
Parece conto mineiro – empoeirado…
Murilo Rubião… [ele é mineiro??].
literatura fantástica.
cheio de vento.
E fim [por isso triste?].
estou sem palavras hoje…
[é a pandemia]
Esta mulher nos deixa tão estupefata e sem resposta quanto o Pai – da “Terceira Margem do rio”- . Só posso contemplá-la e guardá-la junto à outras personagens enigmáticas, que nos fazem voltar às mesmas, tentando desvendá-las. Parabéns ela é grande.
E eu gosto muito que seja uma mulher
Adília parabéns pelo conto.
Muito sensivel e muito bonita a forma que você encontrou pra fazê-la estabelecer um diálogo
com o vento e depois desaparecer integrando-se nele. Triste sim mas forte porque foi a velha quem decidiu subir no telhado.Parabéns!
A perda de funções, a finitude, que se abre ao vento, aos sons, e possibilita segredos. Também me evocou a Terceira Margem, aqui depurada e transcendendo pessoalidades. Escrita refinada e sensível, tocante
ADOREI o conto lembra muito A Terceira Margem do Rio. Pode ser considerado um intertexto. Muito delicado no trato das palavras. Os nossos sentidos são aguçados com o vento. Impossível ficar indiferente. Lindo.
Que texto belíssimo, Adília. Pra ser lido e relido 100 vezes. Parabéns!
Que lindo Adilia. É para ler e reler.
Beijo
Adilia, que conto lindo e sensível. Me lembrou o A terceira margem do rio, do Guimarães. Parabéns !
Gostei mto!