Terceira idade, melhor idade, idoso, idosa, maturidade, todos eufemismos para edulcorar a palavra velhice, tão pesada na nossa cultura do espetáculo. Designa senilidade, caduquice, decrepitude, segunda infância, idade avançada, decadência e em laivos poéticos, a estação das neves, outono, inverno da vida, a última estação… Conotações humilhantes e pejorativas de uma cultura que privilegia o consumo e a imagem da juventude eterna, custe o que custar.
Ora, de acordo com esse léxico, a partir de sessenta anos cai-se nesta categoria sub e o indivíduo fica proibido de usufruir da vida sexual, de se vestir como bem lhe aprouver, de se comportar como sempre lhe deu na telha. Institui-se uma verdadeira censura de costumes, e mulheres como Ana Maria Braga, Suzana Vieira e até Madonna, pasmem!, são pesadamente criticadas, com insinuações malévolas por insistirem em viver como desejam. Os homens também não escapam dessa patrulha “politicamente correta”. Embora tenham mais liberdade que as mulheres, são alvos de qualificativos como ridículos, sendo o pior de todos, tiozinho.
Aos aí chegados, são permitidos alguns prazeres: dedicar-se aos netos, sentar-se no banco de trás com as crianças e o cachorro da família, e receber filhos, genros, noras além dos netos em longos almoços de domingo, agradecendo o fato de não terem sido esquecidos.
Retrato muito crítico, não é mais assim que acontece?
Sim, de fato as coisas mudaram: encontramos a atriz Betty Faria na praia de biquíni: os adjetivos que recebeu variavam de velha, baranga, dessituada, sem espelho, e por aí vai. Poderíamos acrescentar outros, nosso dicionário é rico: cara de pergaminho, encarquilhada, pelancuda, maracujá de gaveta… A grande mudança é que temos uma Betty Faria que exige seu lugar de reconhecimento, que se autoriza à liberdade de um lugar ao sol de biquíni, assim como Leila Diniz já fez há mais de quarenta anos quando posou, despudorada, com um barrigão de sete meses. Um gesto escandaloso. Pela audácia, falta de cerimônia e outras atitudes libertárias, é sempre lembrada como símbolo da revolução feminina, que rompeu conceitos e tabus por meio de suas ideias e atitudes.
Na última Festa Literária de Paraty (FLIP) tivemos um desfile de idosos, mais distantes da terceira idade, talvez na quarta ou até mesmo quinta, na melhor idade de sua produção, rica, generosa, competente, inteligente.
Gilberto Gil, setenta e dois anos, no evento de abertura, deu um show de energia, empatia, amorosidade para com o público que urrava querendo ouvi-lo. Aplaudido de pé durante vários minutos ao final, não se fez de rogado, oferecendo uma doação não apenas da música extraordinária que o possui, mas também um presente dedicado a cada um de nós. Homem apaixonado pela música, sua escolha, sua vida, sua ocupação. Tudo passa pela música que oferece ao mundo.
Eduardo Coutinho, cineasta reconhecido e aplaudido brindou o público com uma fala cheia de humor, inteligência e sabedoria. Contou que jamais revê seus filmes por uma única razão: “consummatum est”. “Definitivo, já passou”, numa apropriação radical do que faz. Interpela seus entrevistados até saber exatamente o que eles querem dizer: “Não se pode tomar como pressuposto que as palavras digam a mesma coisa para o entrevistado e o espectador”. É quando Eduardo Coutinho se apaga, é quando deixa a palavra para o outro, em uma atitude de respeito e interesse pelo semelhante.
“Saber contar é essencial”, disse. “Tem caras que viajam pelo mundo inteiro, são assaltados no Egito, viram deus na Índia, aí contam para você, e você diz: que saco. E tem outros que passaram a vida inteira como carteiros e falam da vida de um jeito maravilhoso”. Homem apaixonado pelo cinema, sua escolha, sua vida, sua ocupação. Tudo passa pela lente com que olha o mundo.
Cleonice Berardinelli, dona Cleo, como carinhosamente é chamada, entrou com passinhos miúdos no palco da Flip, apoiada numa bengala e extasiou a plateia ao declamar, do alto de seus noventa e seis anos bem vividos, poemas de Fernando Pessoa. Profunda conhecedora de literatura brasileira e portuguesa, professora emérita da UFRJ e da PUC-Rio, membro da Academia Brasileira de Letras, é a maior lusitanista brasileira, especialista em Camões e Pessoa. Com voz firme, dicção perfeita, fez a declaração de amor de sua vida: Fernando Pessoa. Foi apresentada ao poeta muito jovem e desde então, manteve-se fidelíssima a uma paixão que alimentou sua vida. Memória prodigiosa aliada a talento para atuação, encarnou as emoções trazidas pelos poemas, como se fosse a primeira vez que estivesse a lê-los. Mulher apaixonada, sua escolha, sua vida, sua ocupação. Tudo passa pelo poeta.
Acompanhada por Maria Bethânia, sessenta e sete anos, que encantou a plateia no dueto que, duas mulheres apaixonadas pelo mesmo homem sem ciúmes ou posses indevidas, ofereceram de presente a um público extasiado. Ao lhe ser perguntado o que o autor representa para ela, respondeu: “ É o poeta da minha vida. Ele sustenta minha respiração, segura o ritmo desassossegado do meu coração. É isso que eu adoro. Leio Pessoa como se fosse a autora, de tanto que ele me traduz.” Suas escolhas, sua vida, sua ocupação, tudo passa pela música e pela poesia com que brinda o mundo.
Sylvia Loeb é psicanalista, escritora e autora dos livros Contos do divã, pulsão de morte e outras histórias (Ateliê Editorial); Amores e Tropeços e Heitor (Terceiro Nome).
Maravilhoso,Sílvia…sim, e tudo passa pela alma com que se alimenta o belo!
Pois é, a paixão alimenta a alma!
Sylvia,
Razão, sensibilidade, atualidade se espelham no seu artigo.
Insista, repita, persista pois é bom ler textos atuais, consistentes e claros como este que você publicou.
Um beijo.
Sergio, obrigada pelos comentários, é sempre bom que apreciem o que escrevemos. Beijo
Muito bom Sylvia! Uma linda homenagem a pessoas que são nossa história e nossa memória.
Isso mesmo, nossa história viva!
E um Viva para nós! !!
Viva!