Às vezes parava o carro naquele cruzamento quando ia à noite do escritório de advocacia para meu apartamento. Com o semáforo fechado percebia aquela moça, parada na esquina, com um avental branco e par de tênis da mesma cor, carregando um cestinho de vime apoiado no antebraço esquerdo. Tenho a impressão que a via ocasionalmente. Certa vez percebi que um carro parou ao lado dela. Presumo que alguém à direção sinalizou para que ela se aproximasse. Ela se debruçou sobre a janela da frente, do lado oposto ao do motorista, e depois de breve diálogo levantou com a outra mão o pano colorido que cobria a cestinha, tirou algo de dentro, deu-o ao chofer e percebi que recebeu algumas moedas, afastando-se do carro, acenando com a mão, quando o sinal abriu. Eu parti também.
É muito curioso como vivem esses paulistas. Cada um faz o milagre que pode para sobreviver. Acho que é assim em toda parte, até nas proximidades dos distritos das elites. Nos mais distantes são mesmo os pedintes, mendigos autênticos ou disfarçados, uns raros expondo seus patentes defeitos físicos que constrangem a todos despudoradamente, e aqueles meninos e meninas malabaristas com bolinhas, como nos circos, que rodopiam pelos braços, ombros, pela nuca e até com os pés, além dos odiosos limpadores de vidro de carros com escova e pano de estopa que temos o hábito de repelir com indignação, também não dando moedas àqueles corredores agitados que penduram envelopes de docinhos e balas de goma sobre o espelho retrovisor enquanto parados esperamos o semáforo abrir, e que abram logo para que não tenham sorte de recuperar seus pacotinhos enquanto correm, esbaforidos, entre os carros; minha esperança inconscientemente silenciosa é de que perdessem algum pacotinho pelo caminho, um pedaço de nossa ardilosa maldade humana. Às vezes, fico pensando, esses devem estar se preparando para a corrida de São Silvestre, pois são sempre de porte atlético, e aproveitam para obterem uns trocados. Esses são os de todos os dias, sem precisar falar daqueles pavorosos viciados que já vi perto da Estação da Luz, mas que, felizmente, não perambulam pelo meu bairro; aparentando muita carência eles perderiam na competição com os demais pedintes.
Mas a moça da esquina, essa é diferente, percebo. Seu cabelo é curto, mas bem-arrumado, com leve toque de make-up, e talvez discretamente bonita em sua estatura mediana. Como não carregava bolsa, creio que guardasse seus ganhos em um bolso do avental. Percebi que não tinha colar, mas dois brincos discretos e um anel barato de plástico no dedo médio da mão direita.
Após uns poucos meses de tê-la visto a primeira vez, notei um pequeno aglomerado de gente naquela esquina, um carro de polícia, o cestinho na calçada chão e muitas empadas espalhadas quase no meio da rua, mas a moça não estava ali, e dois policiais pareciam gesticular com os transeuntes, enquanto um terceiro tomava nota em um caderninho, e dois meninos descalços passaram correndo apanhando algumas empadas caídas. O sinal ficou verde e parti rápida, ainda olhando pelo espelho retrovisor do carro aquela cena estranha.
Passaram-se alguns meses e já havia esquecido aquela moça até uma certa noite em que a vi novamente e com o mesmo traje e cesta. Claro que aguçada a curiosidade, encostei o carro perto dela para lhe perguntar o que havia acontecido naquela noite de alvoroço. Um tanto titubeante disse-me brevemente que o fiscal da prefeitura tentara multá-la como vendedora clandestina, mas que percebendo a chegada do carro de polícia, largou o que tinha na mão e desapareceu rua abaixo, escondendo-se num bar. Sem ter justificativa para minhas indagações e, principalmente, frente as respostas parcimoniosas dela, julguei que havia me intrometido em demasia, ou então, cumprindo missão caritativa para me redimir daquele inconveniente encontro, para o qual não fui convidada, tive o bom senso de lhe oferecer meu cartão de visitas de advogada com a breve admoestação “se precisar de ajuda pode me procurar à vontade” e, naturalmente, comprei uma empada.
Nossa vida em sociedade tem seus percalços. Nós da classe média, diria, os bastante favorecidos, temos aqui e ali uns impulsos que servem para suavizar a culpa inconsciente – traduzidos em intenções benevolentes – geralmente limitadas a palavras de consolo e alívio, menos frequentemente, diria, bem mais raramente, em concessões substanciais em moeda corrente, geralmente a instituições de caridade, espécie de esmola que seria inteiramente dispensável se todos nós pagássemos o que deveríamos de fato em imposto de renda, mas, não falemos mais desse assunto polêmico e desagradável.
Parti, para não mais vê-la por muitos meses, até um dia, creio que quase um ano depois, minha secretária um tanto preocupada, informa que estava na sala de espera uma moça portando meu cartão de visitas. Qual não foi minha surpresa, era a moça daquela esquina, e estarrecida, com certa apreensão, notei seu olho direito manchado, roxo, os lábios inchados e com algum sangramento, e mais lágrimas e aflição.
– “Por favor, nem sei seu nome”….
– “Sou Maria Eduarda”, a moça da esquina”….
– “Seu nome inteiro”?
– “Não tenho; minha mãe me registrou só assim”
-“Foi a polícia”?
-“Não doutora; foi o safado do meu namorado”
– “Então é caso para a delegacia de mulheres”…
-“Não doutora; isso não; só queria dar um susto nele, me devolver o dinheiro que roubou hoje e que desapareça. Tenho o telefone dele e do trabalho. Se a senhora der um susto nele, não me aborrecerá mais. Quero isso: que suma”
– “Mas Maria, sem ocorrência nada se faz. É a lei”.
– “Ah doutora! Pensei que pudesse me ajudar. Então me vou”
– “Espere aí Maria. Talvez então seja melhor V. parar de vender empadas, sair da rua, arrumar emprego fixo”…. Afinal, o que você faz”?
Houve aqui uma certa pausa. Aquele momento sutil em que alguém hesita entre persistir falando em busca de ajuda e a necessidade de esconder-se perante estranhos, mas, sem dúvida, carente de conforto e apoio. Nesse momento que a observava bem de perto vi que tinha corpo bem formado, peitos firmes e fartos, unhas pintadas, decote um tanto ousado, mas a saia era padrão e o aspecto bem asseado. Pedi à secretária que lhe trouxesse um café e algumas bolachas e me lembrei de pedir que se sentasse.
– ‘Eu não a conheço Maria, mas pelo menos conselhos não faltarão. É você quem faz as empadas? Gostei daquela de palmito que comprei de você há meses”.
– “Doutora, as empadas são feitas por minha avó com quem moro. Eu sei fazer muito bem, mas ela tem mais interesse porque faz marmitas para os limpadores da rua. Moramos na zona leste, num prédio da companhia de habitação, mas só com dois cômodos: a sala, que serve de quarto e cozinha, e o banheiro com chuveiro, privada e uma pia. Ela não quer que eu trabalhe, mas estude. Não sei quem foi meu pai. Minha mãe sumiu no mundo. Nem disse quem era meu pai; talvez não soubesse. Me rejeitou e me entregou para a avó, mãe dela”… Nem sei se tenho parentes pois minha avó veio do sul da Bahia antes de eu ter nascido…
– “E você não quer estudar”?
– “Querer eu quero. Terminei o quarto ano da escola pública, mas os dias andam muito difíceis. Não é fácil recomeçar. E eu vejo meus colegas que continuaram, terminaram até o colegial e andam desempregados até hoje”.
Enquanto ouvia, maquinava soluções. Domésticas são raras nesses dias. Talvez ela pudesse cozinhar para mim e meu marido, casal ainda sem filhos, e nem dormiria em casa. Eu colocaria minha doméstica, que cozinha mal, para fazer só faxina e liberaria Maria para vender suas empadas à noite. Prossegui no diálogo.
-“Maria, pergunto se não lhe interessa um emprego fixo. Não precisa dormir no trabalho, nem trabalhar em fim de semana. Posso pagar vale transporte, cesta básica e registrá-la”
Fez-se aqui inesperado silêncio. Ela tomou café enquanto comia duas bolachas doces. Mais silêncio. Estranho isso para alguém que deve precisar de muito mais conforto saindo logo da rua. Foi direta, talvez até um pouco ríspida:
-“Quanto”?
– “Bem”, respondi um tanto hesitante: “que tal dois mil”? (Era um pouco mais do que pagava à minha doméstica). E completei: para começar…
-“Dois mil?!” Dois mil?!” Murmurou ela pensativa, mas a resposta foi enérgica, sem titubear:
-“Doutora, eu ganho muito mais do que isso com os homens que consigo na esquina”….
– “Homens?!… Na esquina?!… Eu pensava que V. vivia de vender empadas”…
– “Não doutora. Não vendo empada. Vendo vagina”….
Desde essa visita ao escritório, mudei o itinerário, e ignorei Maria Eduarda, a vendedora….
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EDER C. R. QUINTÃO – É graduado em Medicina pela Escola Paulista de Medicina desde 1959, doutor em Endocrinologia, comendador da Ordem do Mérito Científico pela Presidência da República do Brasil, livre-docente de clínica médica, professor, pesquisador, membro da Academia Brasileira de Ciências e avô orgulhoso de três netos. “São o mais importante feito do meu CV”, segundo ele. Escrever não entra no CV, é paixão.