Clube dos Escritores 50+ Bettina Lenci Mesa

A MESA, A COSTELA DE ADÃO, A ZONA CEGA, O PERFEITO
reflexões sobre livros e filmes de Bettina Lenci

Não sei escrever a não ser sobre uma superfície plana. Antes do computador, escrevia em cadernos sobre uma mesa. Hoje a inspiração depende do meu computador que não se encontra ao alcance do texto que brilhantemente se escreve na minha cabeça.

Acho que escrevo melhor, com mais clareza e menos prolixidade, batendo, uma por uma, as letras do teclado até formarem sentido, mas, hélas, ausente do meu quarto de dormir, ao acender a luz, o texto brilhante que ocupava as horas em que deveria estar descansando, sumiu! Então, usei – apesar da preferência por um lápis muito bem apontado – a ponta da minha caneta Le Pen para escrevinhar este texto, no meio da noite insone, mal recostada no travesseiro e sem mesa onde apoiar o caderno, este sim, sempre ao lado.

Em momentos similares me ocorre ser uma louca em busca frenética de um sentido, mergulhando os pensamentos que nadam soltos em águas ora gélidas e paralisantes ou ferventes como as chamas do inferno

O objetivo daquele momento insone foi criar um texto para enviar para meus colegas do 50+++, e, ao relê-lo, pela manhã, a vontade continua a mesma. Por que — e talvez seja mesmo sem importância –levo esta ação adiante?

Pensei: se quisermos nos investigar como escritores, dois livros que acabo de ler podem ajudar. Um deles de Annie Ernaux, A Escrita como Faca e outros Textos, e o outro de Rosa Montero, O perigo de estar lúcida

Depois de ler Rosa Montero, saberemos se somos loucos por necessidade da criação pulsante e, depois de Ernaux, saberemos se nossas mentes insanas e insones sofrem a pressão da facada da criação

Gostei de saber que posso intitular-me escritora, pois em tantos momentos acredito estar louca de tão estranha que me parece ser a realidade na qual estou inserida e na qual vivo cotidianamente. A realidade, como acreditamos ser, é uma ficção individualizada!

Outro motivo que me leva a lhes enviar este texto é para comentar os três últimos filmes que assisti: Pobres criaturas, Zona de Interesse e Dias perfeitos.

O primeiro, filma a criação da mulher nascida de um embrião (de si mesma?) que vai se construindo desde os primeiros passos infantis até o salto alto onde se mantém empoderada. Sua trajetória no percurso são diálogos e interações brilhantes através de perguntas que faz ao longo da sua trajetória com interlocutores tipificados, contemporâneos. Quando finalmente pode-se acreditar que ela conquistou-se, a mágica vira contra o mágico, seu criador e companheiro que a leva pela mão para o mundo. Quando adulta, ela escorrega para o engano que homens e mulheres comuns algumas vezes carregam: torna-se voluntariosa, malcriada, impiedosa ao matar de amor o companheiro e transformar o seu criador, — Eva não é fruto da costela de Adão? — em um porco com a cabeça do mágico, um cientista insano. Será que ela se revolta contra um semideus ou, vai saber, Deus mesmo?

O segundo filme registra um gramado verde e florido, vizinho deum campo de concentração onde transcorre a vida pacata e feliz de uma família alemã que precisa usar lenços para tapar o cheiro dos corpos queimados. Não é um filme sobre o Holocausto — no meu entender, — mas uma metáfora que me conta o quanto eu sou alijada das injustiças mortais impetradas pela insanidade do Ser Humano. Não ligo para o meu vizinho! Minha vidinha é burra em busca da felicidade que não existe.

O terceiro filme revelou, metaforicamente também, um homem cuja profissão é ser um insignificante e perfeccionista limpador de banheiros públicos em Tokio, cheio de vitalidade na sua vida cotidiana, diversificada em pequeninos prazeres ao longo do dia até a hora de deitar-se em seu tatami e acordar no dia seguinte para escovar os dentes, vestir o macacão, pegar as moedas que guarda na entrada da casa, sair no alpendre, inseri-las na máquina que fica ao lado e que lhe trará em troca uma caneca de café. Comer um sanduíche no mesmo banco de um mesmo parque, todos os dias, e se deliciar com as sombras das folhas da mesma árvore. No final da tarde vai ao banho público para depois, na mesma mesa de um boteco servir-se de um copo de água gelada e comida completando sua refeição do dia. Em seus momentos de folga, monta na bicicleta para ir à loja buscar o rolo de filme revelado, deixar o novo e comprar outro.

Carrega a máquina fotográfica, volta para casa e escolhe a melhor foto da sua árvore, tirada naquela semana. Passa na mesma livraria para escolher um novo livro que lerá antes de adormecer no seu tatame. Escuta ininterruptamente músicas que só um sensível entendedor conhece

A beleza deste filme, Dias Perfeitos? O hábito de importar-se com o Outro que no filme percebemos em fortuitas imagens, simples e sem nódoas. Tão simples quanto escovar os dentes todos os dias. Simples demais!

Os diálogos são liquidificados em sons

A perfeição da realidade diária, repetitiva, prazerosa é suficiente para amar a vida no que de melhor ela pode nos informar: a noção de que é possível sobreviver a ela e ser feliz assim mesmo!

Precisa de mais?

Nos dois primeiros filmes, vi o nosso mundo contemporâneo em seu aspecto mais intimidante, mais inconsciente do que no passado. Um mundo repleto de mágicos desvairados a definir destinos e criaturas criadas à sua imagem e semelhança

No terceiro filme vi que não só somos irremediavelmente sós como a solidão é um componente da realidade em nada virtual! O enredo deste filme traz algo de inédito à nossa consciência: o cotidiano injuriado como enfadonho, sem desejos, pode ser uma vida levada à perfeição!

6 comentários

  1. Que gostoso de ler Betina. Rosa Montero é minha companhia há anos. Quanto aos filmes corro para assistir. Quem dera escrever como você.
    Beijo
    Tita

  2. Ai, Bettina, toda vez que te leio, eu penso: será que conseguirei escrever com essa fluidez? Parece que estou ao seu lado na sala de visitas.
    Que delícia. Adoro Rosa ‘Montero há muito tempo, desde o genial “ A louca da Casa”.
    Quanto aos filmes queria trocar mais minhas impressões com você! Um beijo

    1. TITA QUERIDA, SEMPRE FOI CAÇULA E AGORA É ADULTA…. ESTRANHO… LEMOS E SENTIMOS OS MESMOS MOVIMENTOS DA VIDA, HOJE, TANTOS E TANTOS
      ANOS DE HIATO DE TEMPO ENTRE A ADOLESCENCIA E AS DORES E ALEGRIAS DE SERMOS ADULTOS.
      BEIJO E OBRIGADA
      SEMPRE
      BETTY

  3. Sempre me pergunto se um texto é um pré-texto para um arranjo maior e definitivo ou um pretexto para me desocupar da dita realidade que me cerca. O seu texto voa como uma andorinha no final da tarde chilreando sentimentos. Axé!

    1. LILIAN, AMIGA , CaRISSIMA

      É claro que você consegue. E sabe mais: escrever é para nos alegrar por um lado, apaziguar de outro e sofrer ,ainda, por um ângulo que só a alma conhece.
      Solte-a! ela lhe indicará o caminho das pedras. Caminhe por onde te interessa estar. Nos movimentos místicos indagadores e seus pensamentos sobre D’us, , a politica e seu posicionamento. Quer me parecer que nesse momento você quer estar mais perto do coração: suas lembranças familiares e sua pequena neta .Esgote a membrana das lembranças. Qualquer assunto escrito passa como a alma a vê! O olhar! ! E você faz isso muito bem! Sua origem deve ser repassada e esgotada para deixar o caminho aberto para o abstrato que o sentimento produz.

  4. Bettina, você transcreve nesse texto tantos dos meus sentimentos. Agora mesmo estava reescrevendo “O inimigo”, um textinho sobre a diferença entre a caneta no papel liso e o cursor pulsante à nossa frente, enquanto estamos tentando expressar nossas ideias! E, também, Rosa e Annie apresentam lindos relatos do poder da escrita. Acabei de ler A Escrita como Faca e recomecei em seguida. Aliás, é uma aula de ética.. sei lá.
    Obrigada pelo seu texto!!!

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