Clube dos Escritores 50+ Carlos de Castro Tempo

A Luz, a Sombra e o Tempo, por Carlos de Castro

Ganha largueza o panorama visto do alto. Vive-se um “aquecimento” do tempo e, intuitivamente, percebemos o aumento da velocidade com que gira o dia-a-dia em nossa pequena megalópole. Apesar disso, o tempo por vezes relaxa, espraia. Aqui e ali dá “um tempo” para si mesmo. Como pode?

Primeiro foi um filme: ‘Dias Perfeitos’. Nele, o tempo parece parar. Por trás das jornadas repetitivas do personagem central, uma série de sentimentos vai aparecendo. Sentimentos que vão sendo filtrados e surgem de maneira sutil. Parece que se escondem nas ruazinhas estreitas iluminadas pelo olhar da câmera, e surgem, inesperados, por entre as vias expressas de Tóquio. É ali que o jogo de luz e sombra primeiro se revela, na passagem do solpor entre as folh as de grandes árvores. No filme, Hirayama fotografa os raios solares “filtrados”, sempre num mesmo lugar e horário. Expõe assim, pela arte japonesa do Komorebi, as infinitas variações que ocorrem nos seus dias “iguais”. O delicado congelamento do instante.

Depois veio o Sarau. Uma tarde de domingo que se acalma para receber nosso Clube dos Escritores na gostosa Livraria Mandarina. Um dos temas iniciais da conversa foram justamente as luzes e sombras de “Dias Perfeitos”. Daí para a frente o papo fluiu e nos convidou a viajar.

Levantamos voo com as reflexões poéticas do Eder; aterrissamos no Chade com as aventuras esqueléticas da Blanche; passamos medo com os efeitos de uma queimada na fazenda da Tita; voltamos a voar na crônica- poesia da Lilian e no chocante primeiro beijo de uma menina, flagrado pela Lourdes. Finalmente, coube a mim trazer o grupo de volta ao chão da Bahia e aos mistérios de uma Festa de Iemanjá.

Só que a agradável luz que brotou do Sarau também viu uma sombra chegar: a notícia de que a Mandarina – a saborosa Mandarina que sempre nos acolheu tão bem – iria fechar. Mais uma vítima da força da grana que explodiu os custos de aluguéis e mandou para o espaço, ou para as nuvens, nossa querida livraria.

Mas vejam que curioso: naquela última visita à Mandarina encontrei, ou melhor, fui encontrado por um livrinho do Ítalo Calvino que ainda não conhecia: “O Caminho de San Giovanni”. É uma reunião de memórias e reflexões do grande escritor italiano. Numa delas, intitulada “Do Opaco” encontrei as seguintes passagens:

… “a sombra vai adquirindo nitidez na mesma proporção em que o sol vai tomando força, como a sombra matutina de uma figueira, de tênue e incerta que era, vai se tornando, conforme a subida do sol, um desenho em preto da figueira folha por folha… aquela concentração do preto para significar o verde brilhante que a figueira contém” …

… “de modo que eu poderia definir o ubagu (opaco) como anúncio de que o mundo que estou descrevendo tenha um avesso … sinto esse avesso do mundo escondido para além da espessura profunda de terra e de rocha, e já é a vertigem que reboa em meu ouvido e me impele em direção ao alhures. ” O fato é que a Luz e a Sombra, com a ajuda de um certo “relaxamento” temporal, conectaram “Dias Perfeitos”, o Sarau e Ítalo Calvino. Resolvi deixá- los juntos nesta crônica. Era o mínimo que eu poderia fazer, não é?

Quanto ao todo poderoso Tempo…. Ah! Esse aí acelerou de novo. Olha lá! Foi embora.

8 comentários

  1. Carlos, que beleza esse teu relato de um momento que, agora, estará gravado nas nossas veias em pura poesia. Obrigada por registrar nosso encontro de forma tão delicada. Falamos lá na Mandarina cujo fechamento é mais um desligar de luz das nossas consciências, sobre o livro espetacular de Junichiro Tanizaki: Em louvor das sombras. Me lembrei muito dele ao ler sua crônica.
    Beijos

  2. Carlos: V. cometeu o disparate de colocar meu nome nas histórias que envolvem Calvino, Hyrayama, etc. Acho que vou ter que refazer meu currículo….

  3. Carlos: V. cometeu o disparate de colocar meu nome nas histórias que envolvem Calvino, Hyrayama, etc. Acho que vou ter que refazer meu currículo….

  4. Caro Eder. Gostei demais do seu texto … Para mim, este texto é pura sensibilidade e reflete olhos que veem outras coisas como o relaxamento ou o espraiamento do tempo ou o delicado congelamento do tempo. Muitas pessoas não dão importância a isso e não percebem que o tempo tem energia, frequência, vibração e até cor. Um grande abraço. PS Gostei das aventuras esqueléticas que tanto me trouxeram … Um grande abraço.

  5. Prezado Carlos. Foi emocionante assistir a “Dias Perfeitos” e saber que Wim Wenders continua em plena forma, extraindo poesia da aridez tecnológica de Tóquio. Assim como é sempre emocionte ler você, extraindo poesia dos encontros, das pessoas e dos mínimos espaços da sua São Paulo. Um forte abraço!

    1. Obrigado Luciano. Você, como poeta que é, definiu bem a arte de Win Wenders: um garimpeiro da poesia.
      Abraços

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