Clube dos Escritores 50+ Blanche de Bonneval A mais negra das noites

A HORA MAIS NEGRA DA NOITE,
por Blanche de Bonneval

Eu estava servindo no Tadjiquistão no auge da guerra civil. Havia  combates entre as forças governamentais e os fundamentalistas islâmicos até na capital, Duchambé. O pessoal das Nações Solidárias estava proibido de sair de casa a não ser para ir trabalhar. Me congratulei de já ter feito o meu reabastecimento de gêneros alimentícios no outono em Tashkent, capital do país vizinho, o Uzbequistão, quando as estradas ainda eram praticáveis. Agora no inverno, tinham ficado muito perigosas em vista do alto número de placas de neve gelada.

Voltara hoje do serviço com más notícias: grupos de bandidos não identificados tinham informado que iam começar agora a raptar funcionários de organizações internacionais para divulgar melhor os seus credos e obter resgates mais substantivos. Os raptos de cidadãos tadjiques já tinham começado havia muito tempo: os facínoras  invadiam as casas atrás de reféns ou tiravam pessoas de seus carros nos faróis ameaçando-as com armas, jogavam-nas no porta-mala de seus veículos e saiam disparados para as montanhas. Parecia-me cada vez mais evidente que os nossos chefes iam ter de proceder em breve a uma evacuação para proteger o pessoal internacional.

Mal chegara em casa, fui avisada pelos meus vizinhos tadjiques que, ao meio dia, quando eu estava no serviço, um grupo de três homens tinham vindo ao beco onde residia indagar se lá moravam estrangeiros. E a minha vizinha,  aquela idosa que vendia doces na calçada, tinha indicado minha residência. Fui avisada pelos homens do beco, que desde a degradação da segurança na capital, eles se revezavam em vigílias noturnas para proteger todas as nossas casas. E eu sabia que eles dispunham nos seus armários de verdadeiras armas de guerra e farta munição. Portanto não devia me preocupar com eventuais ataques lançados contra minha residência a partir da estradinha de terra da viela. Mas se os bandidos invadissem minha morada à partir da avenida Aini, que se encontrava do outro lado do beco frente ao meu  jardim, eles não teriam como saber que eu estava em dificuldade. O mais seguro no momento era que eu me mudasse dali por alguns dias.

Também soubera que tinha havido hoje à tarde um tiroteio, curto mais violento, entre os homens do beco (ajudados pelos moradores das casas que ficavam do outro lado da avenida Aini) e bandidos. Estes montados em seus Toyotas passaram na rua atirando em tudo e todos e até jogaram uma granada no telhado de uma das casas da viela que explodiu no jardim, destelhando parte da residência,  danificando suas paredes e matando galinhas e um dos cães de guarda. Os bandidos todavia, presos num fogo cruzado e sem ter onde se abrigar, logo bateram em retirada.  Dois homens do beco foram feridos no confronto, sem gravidade felizmente.

Para agravar as coisas, o Uzbequistão resolvera deixar de vender fiado ao Tadjiquistão. Assim cortara neste inverno gelado tanto o suprimento de gás quanto o de eletricidade. E informaram ao governo tadjique que este só seria restabelecido quando os atrasados tivessem sido pagos. Isso me penalizava mais particularmente pois eu não tinha fogão a lenha em casa. Meus vizinhos ficaram sabendo que eu não tinha nenhuma fonte de calor para me aquecer. Então a família que morava na frente de casa começou a me mandar toda noite uma vasilha grande de sopa tradicional fervente composta de pedaços de carne de carneiro bem gordurosos, ervas aromáticas e cenoura. A sopa me aquecia o suficiente para eu tomar um banho de gato rápido na água morna que a minha funcionária me trazia de sua casa, bem próxima da minha. Depois vestia uma camisola com duas malhas quentes, meias grossas de lã e colocava por cima meu casaco de inverno pois a temperatura acabava de chegar a menos 35 graus negativos.

Á noite, refletia sobre as notícias que recebera tomando a minha sopa, atenta a todos os ruídos, alumiada por uma única vela que desenhava em casa sombras imensas e trêmulas. Eu me sobressaltava com os passos dos mochos que saltitavam no sótão de casa, com o roçar dos galhos maiores das árvores nos muros e no telhado de minha moradia. E tinha medo de ver aparecer vultos armados atrás dos meus janelões desprovidos de barras de ferro. Senti-me muito vulnerável …Veria no dia seguinte se algum colega me receberia na sua casa por uns dias …  O medo tem um cheiro, uma cor e uma presença. Durante o dia está aí, relativamente difuso. Mas é durante a noite que ele emerge com cheiro de neblina e cor de luz de lampadários com halos indistintos. Cresce com os uivos de cães errantes e o som de rajadas de metralhadora e se expande na cidade. Seus contornos ficam ainda mais precisos, mais densos e ameaçadores no silêncio e na escuridão da noite. 

Ia levantar cedo amanhã mas não tinha sono apesar de trabalhar em média 18 horas por dia. Senti que estava atingindo o meu limite. Quanto tempo ainda aguentaria essas condições tão extremas?  Fazia meses agora que a situação político-militar estava péssima e piorando cada vez mais. Cerrei os dentes: se estava beirando meus limites, ia ter de ampliá-los e aguentar firme. Sentia que tinha um trabalho importante a fazer naquele país e desistir nunca fora uma opção para mim em lugar nenhum. Reconhecia que no momento eu me encontrava no inferno, mas não, pensando melhor, o que estava vivendo agora era pior do que o inferno. Pelo menos lá fazia calor. E me quedava ali, sentada, encolhida de frio, vendo a hora passar…Talvez esperasse ver o próprio demo aparecer na minha casa, feliz com toda esta situação de crise. E se desse o ar de sua graça, eu até o teria convidado a partilhar comigo uma xícara de chá verde frio e um dedo de prosa.

Acabei levantando para ir dormir. O tiroteio começara de novo mas isso já tinha virado rotina. Pensei que a hora mais escura da noite precede a alvorada. Logo chegaria a manhã luminosa com o invariável céu azul e muito sol que além de derreter a neve noturna também fazia renascer cotidianamente  no meu coração a esperança de dias melhores e a vontade de ultrapassar os desafios….

5 comentários

    1. Caro Eder Eu não sei se não estaria trocando seis por meia dúzia … Mas é verdade que pelo menos numa favela aqui no Brasil, eu falaria a língua e saberia – até certo ponto – as encrencas que podiam surgir no meu caminho. No Tajiquistão esse não era o caso. Mas a violência deve ser a mesma só que se manifesta de maneira distinta.

  1. Ótimo texto, Blanche!
    Quanto medo!
    Em nome do que você foi parar tão longe, com tanto perigo e tanto desconforto?
    Conta pra gente Blanche.

  2. Naquela época eu precisava me provar que eu podia vencer em qualquer circunstância e provar isso para minha mãe com a qual tinha um relacionamento muito conflitante. Infantil não? Mas agora, já bem mais velha, vejo que antes de mais nada eu precisava de adrenalina para viver bem e eu também trabalhava muito bem em países extremos.. Mas eu não imaginava a série de desafios que ia encontrar no Tajiquistão…. Ultrapassou minhas expectativas … E Foi lá mesmo que conheci o que verdadeiramente e ter medo. Mas também foi lá que também tive mais aprendizado e sucesso na minha carreira. Experiência inesquecível!

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