A CARTOMANTE,
por Zulmara Salvador

 “Tédio: Sensação de enfado produzida por algo lento, prolixo ou temporalmente prolongado demais; sensação de aborrecimento ou cansaço, causada por algo árido, obtuso ou estúpido”.

Fica sempre pensando, enquanto embaralha as cartas, na definição que leu no dicionário, quando tinha uns 18 ou 19 anos. Incomoda-se especialmente com a parte “árido, obtuso ou estúpido”. Arruma a toalha vermelha na mesa redonda, passa uma daquelas vassourinhas mágicas de antigamente: não pode ter um pelinho, um pozinho. Liga a luminária em forma de planeta azul. Dispõe as cartas e espera.

Aos 18 ou 19 anos achava que esse tédio era culpa da mãe, do padrasto, da ex-amiga que foi para Miami se casar e a deixou sozinha, entediada. Que era culpa do cursinho do vestibular; do cachorro, que tinha que levar pra passear; do dono da padaria que dizia, todos os dias, “bom dia menina linda, o que vai hoje?” E era sempre: “três pãezinhos”. Ele não sabia? Que tédio. Achava que o tédio vinha de fora, das pessoas entediantes com quem vivia, das pessoas que via no metrô, com ar de gente morta balançando a cada parada, das mulheres sentadas no chão da calçada com uma criança no colo e a mão esticada, da imagem na cruz quando ia à igreja pra algum batizado ou missa de sétimo dia. Tem cara mais entediado que aquele na cruz? Ela esquecia o que aprendeu no catecismo e só via o rosto dele, virado pra baixo: entediado. Ela sentia que ele tinha passado por algo “árido, obtuso ou estúpido”.

Tem muitos clientes. A faculdade de psicologia a ajudou a entender as angústias dos outros. Primeiro tentou clinicar, mas a ciência é muito falha. As pessoas gostam mesmo é de mensagens mágicas. Entendeu isso logo e passou para outras técnicas: fez cursos de leitura de cartas, Tarô, vidência, bola de cristal, passou seis meses com uma trupe de ciganas picaretas que lhe ensinaram uns truques de leituras de mãos para as pessoas entediadas: elas querem saber se vão sair de suas vidas áridas, obtusas ou estúpidas. Deu-se melhor com seus vestidos de crepe e turbantes acetinados, do que num terninho bege em um consultório asséptico e caro. A sala da casa é cheia de móbiles reluzentes em forma de pássaros e bichos alados, as cortinas são azuis claras e verdes, com estrelinhas penduradas, ela mesma faz seus incensos – fica mais barato – e dorme no primeiro andar, num quarto todo branco, com lençóis brancos, persianas brancas, luz branca e uma pequena estante de livros de ficção científica que ela adora e lê repetidamente.

Teve um momento na vida em que considerou não estar entediada: foi quando teve seu único filho. Ele a acompanhou em suas andanças esotéricas e acreditou nelas. Hoje vive numa comunidade nos Andes. Ela acha que deve ser um tédio viver entre lhamas cuspidoras, cholas, ruínas de civilizações passadas e chá de ayahuasca. Sente saudades dele, mas também um tédio profundo quando recebe suas mensagens com fotos, onde ele sorri abraçado a uma árvore, ou nu, de braços abertos numa cachoeira ou num lago. 

Agora, aos sessenta anos, ela sabe que o tédio não é culpa de ninguém em geral, ou em particular: é parte dela mesma. Sente-se árida, obtusa e estúpida o tempo todo. E também já aprendeu que a vida é algo lento, prolixo e temporalmente prolongado demais.

9 comentários

  1. Boa noite Zulmara, abri hoje o site e cai no
    Seu conto … Parabéns! Ele é assustador mas tão bem construído. Tantas pessoas a minha volta acometidas pelo tédio que me olham com ares de censura por eu achar a vida linda e cheia de promessas. Será que é um mal dos nossos tempos modernos? Nao sei bem …

  2. Olá Blanche. Obrigada pela mensagem.
    Não creio que o tédio seja um mal dos ‘tempos modernos’. Ele é parte do Ser Humano, quando se dá conta do seu tamanhinho, frente ao Universo.
    Um beijo

  3. Gostei muito do seu conto, bem escrito, claro e suscinto, para contar sobre o tédio, um “mal” criador.
    Creio que a gente se põe a escrever por falta do que fazer com o mundo que nos rodeia. Poderia também
    ser um conto sobre solidão.
    abraço
    Bettina

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