A capela,
por Lourdes Gutierres

Vejam isto!  Não é que apareceram nove ossadas no coração da cidade? O fato aconteceu em um terreno da Rua Galvão Bueno. Com a demolição de um prédio pelos proprietários para dar lugar à construção mais moderna, arqueólogos acabaram encontrando os esqueletos. A notícia provocou inquietação nos comerciantes e moradores locais, sentiam-se desconfortáveis, estavam em cima de cadáveres?

A descoberta das ossadas revela mais um caso de “enterramento” da nossa memória histórica. Naquela área, havia um cemitério destinado à população excluída: negros, índios, enforcados, indigentes. Adornando um desses mortos, estava um colar com contas de vidro, indicaria o pertencimento a alguma religião de matriz africana, segundo arqueóloga que trabalhava nas escavações. Colar, contas – de quem? Escravas serviam na capital aos grandes proprietários de terra; fosse uma delas a dona do colar, poderia ter sido ama de leite, ter criado filhos da sinhá. Se fugitiva, talvez tenha sido enforcada, ali perto, no Largo da Forca. Dela, apenas seu adorno, identificação nenhuma.

A vista aérea do local mostra o resultado do que se considera modernização:  encorpadas estruturas verticais. Entre as edificações desponta uma torre com sino. É a Capela Nossa Senhora dos Aflitos, no fundo do beco da Rua dos Estudantes. Estreita, opaca, espremida – resiste à desconstrução da história. A aparência de abandono não condiz com a realidade; é frequentada por inúmeras pessoas, de diversas crenças e religiões, qual a busca?  Apenas uma certeza, ali habita o mistério.

Onde o real? Esta foi a dúvida que surgiu quando visitei a Capela. Lembrei-me dos ensinamentos da filosofia atomista da Grécia antiga: o real é o que permanece quando ninguém está lá.  A mulher de azul rezando, o senhor de cabelos grisalhos em frente ao altar, a criança que corria entre os bancos, eu e minha inquietude, o que somos na realidade? Não posso responder pelos outros, quanto a mim, sinto ter muito a aprender.

Quando todos saírem da Capela, as luzes forem apagadas, o portão trancado, que “real” permaneceria? Do lado esquerdo de quem entra, há um aposento sempre fechado. Pelas frestas da porta de madeira antiga, estão pendurados papéis com pedidos ou agradecimentos deixados pelos frequentadores.  Acreditam que por detrás desta porta encontra-se Chaguinhas, o soldado condenado à forca e que teria sido assassinado a pauladas, após as cordas arrebentarem.  Permanecera preso nesta sala antes de ser conduzido ao enforcamento.  Seus restos mortais estariam aqui. Faz milagres? Com certeza, me responde a senhora que toma conta do local. É santo? Para o povo, sim, afirma ela. Seu processo de santificação popular começou no dia de sua morte, pelo testemunho dos presentes na praça pública. O fato de as cordas se romperem mais de uma vez foi considerado sinal de sua inocência, configurando-se naquele momento um milagre.

Forca. Pauladas. É difícil acreditar que tais coisas acontecessem há tão pouco tempo.  Nesse caso, qual a motivação dos algozes? Mostrar serviço à Coroa? Receber recompensas? Amedrontar o povo? Quanto ao militar negro santista, Francisco José das Chagas, o Chaguinhas, era jovem, tinha pela frente  uma série de possibilidades; poderia ter constituído família, criado filhos; como militar, quem sabe fizesse carreira, ganharia novas patentes, medalhas de herói. Condenado por conduzir um movimento reivindicatório por soldos atrasados, pode-se imaginar que tivesse firmeza de propósito e liderança para aglutinar pessoas e se fazer respeitar. Quem sabe não tivesse atuação importante no processo da Independência que ocorreu no ano seguinte? Se viver é fazer escolhas, ante tantas possibilidades, a escolha dele, certamente, não teria sido morrer jovem, submetido à tortura.

Hoje no altar dos aflitos, é considerado milagreiro. Quantas lágrimas deixaram de ser derramadas com sua ajuda? Quantas cirurgias canceladas? Quantos lares reorganizados?  Testemunhos são diversos e os devotos aumentam a cada dia. Não quer fazer um pedido a ele?  Perguntou-me a zeladora. Ensinou como era o procedimento, bem simples. Com certeza, vai ser atendido e voltará aqui para agradecer, concluiu sorrindo.

Naquele momento, havia apenas uma mulher de turbante orando em frente à imagem de Santo Antônio de Categeró, protetor dos pobres. A serenidade do ambiente convidava à introspecção. Sentei-me, com os olhos fechados, procurava refletir a respeito das fendas do deserto humano. Escolhi uma questão secular, por considerar ser hora de se dar um basta – É isto! É disto que estamos precisando! afirmei a mim mesma. Fui até a porta indicada, dei três batidas, surrurando: Chaguinhas, Chaguinhas, Chaguinhas. Achei uma pequena brecha para colocar o bilhete com meu pedido.

Na saída, a senhora me convidou para comparecer ao terço para o santo popular que acontece toda primeira sexta-feira do mês.

– Sexta, amanhã? Eu venho.

12 comentários

  1. Lourdes adorei sua crônica. Me deixou cheio de culpa por desconhecer a história de Chaguinhas, o provável santo herói, e, curiosidade para conhecer a capela Nossa Senhora dos Aflitos.

  2. Bela crônica e importante chamar a atenção para essa capela que “resiste à desconstrução da história”. Há alguns anos tive uma experiência parecida quando fazia um passeio pela Liberdade. Que Chaguinhas ajude mesmo a salvar e proteger nossa história.

  3. Lou, mais uma crônica construída de modo magistral.
    Gostei do que escreve sobre o real: é o que permanece quando ninguém está lá, … eu e minhas inquietudes.

  4. Lourdes, adorei ler a crônica, do início ao fim, uma delícia. Quero visitar a capela e sentir essa conexão toda com nossa história e essa energia de força e justiça de Chaguinhas.

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