Longe de pretender discutir ideologias de gênero, diversidades ou temas correlatos. Me ocorreu apenas, graças ao surgimento de uma antiquíssima lembrança, constatar a superioridade das mulheres em alguns quesitos. Senão vejamos:
Meados dos anos sessenta, saída do velho Colégio do Carmo – escola exclusivamente masculina na época. Onze e meia da manhã, dia nublado e nenhuma chance de jogar bola na quadra do fundo – na semana anterior tínhamos levado uma ameaça de suspensão por causa disso. Sem outras opções, eu e o Ary, trajando nossos indefectíveis blusões azuis com listras amarelas, fomos para o ponto inicial do 28 – Vila Bertioga, ali no meio da Praça Clóvis.
Era nossa rotina diária, tomar o ônibus que nos levaria de volta ao coração da Mooca. A disposição interna dos ônibus tinha, na parte da frente, dois bancos de três lugares no sentido longitudinal, um de frente para o outro. Dali para trás seguiam as fileiras de bancos de dois lugares. Provavelmente o projetista tinha pensado nessa disposição para diminuir a aglomeração junto à porta de saída que, ao contrário de hoje, era na parte da frente do coletivo. É, não deixava de ter sua lógica, mas confesso que eu achava meio besta ficar ali olhando de frente para algum estranho durante toda a viagem. Não à toa, era conhecido como o banco dos bobos.
O fato é que, sabe-se lá por qual meandro do destino, nós sentamos num daqueles bancos e fomos tocando nossa conversa que era sempre muito animada. Devo reconhecer que mais por conta dele, típico descendente de italianos que falava alto, gesticulava muito. Eu participava do meu jeito, sempre num tom abaixo, mais contido.
Conversa vai, conversa vem, eis que numa das primeiras paradas sobem três meninas com seus uniformes escolares e sentam exatamente no banco em frente ao nosso. Opa! Alarmes acesos – amarelo piscante. Do alto dos nossos doze ou treze anos estávamos sentindo despertar o interesse pelo universo feminino, mas, pobres coitados, completamente despreparados e sem nenhuma estrada percorrida no assunto. Não tínhamos ainda vivência de foras e cantadas não correspondidas. Alimentávamos a ideia de que era fácil impressionar o suposto sexo frágil. Doce ilusão.
Não me lembro qual de nós dois começou. O que importa é que fomos nos revezando na contação de vantagens, na sucessão de balelas:
– Lá em casa chegou outra televisão essa semana
– E nós então! Chegou uma vitrola Phillips, novinha…
– Podemos fazer outro baile com nosso conjunto de rock
– Isso, no sábado à noite.
– Puxa, esse final de semana vamos para o Guarujá, vamos deixar pro outro…
O céu era o limite. Vantagem em cima de vantagem, lorotas sobre lorotas. Enquanto isso, as meninas só ouviam. Trocavam olhares de soslaio, carregados de desprezo. Com uma ou outra interjeição gestavam o contra-ataque, sem dúvida.
O curioso é que, como o ônibus não estava muito cheio, os demais passageiros assistiam de camarote aquelas escaramuças. O que eu daria para estar ali, só assistindo…
Foi quando chegamos ao ponto da rua Orville Derby. O Ary levantou e desceu num pulo, gritando seu Tchauu Belo!
Pronto, fiquei só, totalmente desguarnecido: o bobo do banco. Eu desceria só no próximo ponto, na esquina da rua da Mooca com a Paes de Barros. Justamente um trecho que ficava sempre congestionado, e no final tinha um farol que demorava séculos para abrir.
Imaginem a cena: eu me sentia uma presa que não sabia para onde correr, cercado por três leoas jovens. Sim, jovens, mas que já nasceram sabendo as estratégias de caça. Ou, de maneira mais direta, uma demonstração sutil da instintiva força feminina que aparece particularmente quando suas representantes se unem.
O ataque começou:
– Vamos tomar um chá mais tarde nos jardins do palácio?
– Puxa, mas hoje tem sessão no cinema lá de casa…
– Vocês já viram os três carros novos na nossa garagem…
A saraivada de chistes crescia, a ponto de provocar gargalhadas da “plateia”. Não consegui esboçar defesa, só torcia para chegar logo meu ponto. Demorou uma eternidade.
Pensando bem acho que foram duas eternidades.
Afinal desci. Ufa!
“Arranhado” aqui e ali, entrei rápido na pastelaria chinesa da esquina e pedi um pastel de queijo pra afogar as mágoas.
Essa é a autêntica e deliciosa crônica paulistana, tão boa quanto o pastel da pastelaria chinesa da Mooca. Parabéns, Carlos!!
Uma lembrança muito bem narrada, parabéns!