Com o fim das restrições à ameaça de um vírus letal, temo que estamos comemorando como gladiadores em uma arena romana, seguros de que derrotamos o bichinho. Desconfio que, ao virarmos as costas para receber os aplausos do público, ele volte a atacar.
Reclamações de todo tipo justificam o comportamento liberto e errático de hoje, passado o período crítico da covid 19. Não há conversa em que a palavra pandemia – a vilã – não seja motivo para desculpas. Ela se tornou responsável por prejuízos e perdas de toda natureza: memória, solidão, neuroses, esgotamento – que se traduziu em uma só palavra: burnout ou, tudo queimado, embora tenha queimado, mesmo, a privação da liberdade.
Não há como negar os fatos, mas, estes estados e os seus limites, com ou sem pandemia, prevalecerão entre nós por outras razões que não a da covid-19. Por outro lado, poucos mencionam os ganhos adquiridos nos dias de recolhimento, sem as distrações externas.
Alguns enclausurados aproveitaram para “ver” como a humanidade tem pecado a favor do caótico cenário em que vive nosso planeta. Outros perderam a inusitada oportunidade para “pagar seus pecados” e rever, com a devida introspecção, que a vida não gira em torno de seu próprio umbigo.
Ainda temos a oportunidade para abraçar a causa coletiva dos apelos para uma paz mais duradoura entre países e pessoas.
Tomei um tempo para sentir o que, porventura, a pandemia pode ter causado de mudanças em nós e quais transformações basais pairariam, hoje, mundo afora. Sigo as indagações dos estudiosos e chego a duvidar de suas conclusões, inconclusas. Apesar de tanto conhecimento científico e tecnológico, estamos tateando, perplexos.
Assim, sendo ainda imprevisíveis as consequências da covid, vou arriscar mencionar o lugar no qual me encontro.
A inspiração para escrever com simpatia, generosidade ou mesmo esperança sobre o cenário atual não chega até mim. Por esta razão, resta-me escrever sobre a minha crise no momento presente. Em primeiro lugar vivo mais assustada do que durante o interminável tempo que passei trancafiada, com medo de morrer, apesar das várias vacinas que tomei.
Em segundo, de dentro do meu observatório, tento escrever crônicas singelas, inspiradas na vida como – imagino ou sei – ela ser!
Escrevia sobre situações que aconteciam perto de casa, na rua, na farmácia, no bar, etc. Como se diz “escrevo coisas que estão no ar,” semelhante à quando zipamos o controle da TV e vemos diferentes imagens, histórias, últimas notícias, verídicas ou não, ao piscar de um olho.
Acontece que estou sem o controle nas mãos!
Hoje, teclo no meu Word, o tempo PP (pós pandemia) e confesso-me estranhamente esquisita.
Não são as fakes news que me assustam, são as “News” mesmo, qualquer uma, a razão para eu não mais respirar a outrora agradável atmosfera nos lugares públicos. Hoje Inspiro algo de extravagante, exagerado, supervalorizado. Há mais carros, mais poluição visual, mais ruídos sonoros, mais gente embaixo da ponte. Talvez, no AP (antes da pandemia), por morar numa grande metrópole e ancorada no seu cosmopolitismo, eu me encontrava pouco atenta às questões que afetam os habitantes do planeta, a cada minuto que passa.
Hoje, depois de experimentar o silêncio revelador de algumas verdades – diferentes para cada um – sinto-me desconfortável e com maior necessidade de me relacionar afetivamente com a natureza do que com pessoas. A razão talvez seja a saturação do Novo Estar do PP: confuso e tomado de excessos de toda ordem.
As transformações tecnológicas, financeiras e políticas, transmitem a sensação de que nada mais será igual ao que o Tempo vem colocando para todos: o passo está difícil de acompanhar! Há um sensível fluxo de informações mais concreto, mais realista (mais pessimista?) que pode advir de estarmos despertos quanto às entrelinhas escritas. Não há, contudo, indicações de saídas amenas a curto prazo. Parece que estamos nos afogando em questões criadas por nós mesmos, devoradoras, pendentes de uma solução exigente.
Pergunto-me se nesse momento estaria tendo uma percepção mais acurada da nossa curta vida? Ou será um alerta sobre assuntos que se tornaram urgentíssimos e precisam de uma solução imediata? O alto falante no comício planetário está voltado para a consciência dos muito privilegiados enquanto os sem privilégios algum vivem em carne viva, sangrando, perante uma realidade humana duríssima. Ou será a noção de que existe um prazo pré datado no qual poderemos ser obrigados a viver em uma Terra devastada, sem arvores para sombra e riachos para saciar a sede?
Estamos sendo “chamados ” ou devemos nos obrigar a reagir, mesmo sem a vontade necessária? Ou, por detestarmos mudanças, caímos na tentação de não acreditar em um mundo que continuará igual ao que era antes do advento da covid 19?
Creio na nossa indiferença às indagações sussurradas no período de reclusão. O estado de inquietação e devotamento à liberdade recém promovida é apenas a tomada de conhecimento de que a eternidade não tem fim. Nasceu uma devastadora insegurança física e emocional sobre o devir. Pensar em uma corrida cronometrada contra o tempo supostamente perdido durante a pandemia.
Lembrei do livro de Marcel Proust, À Procura do Tempo Perdido, romance do século passado que poderia nos pontilhar um caminho futuro: no seu sétimo e último volume “O Tempo Redescoberto“, Proust, em uma complexa viagem ao passado, descreve as transformações ocorridas nos principais personagens do livro. Estes, ao longo do tempo, foram mudando sua maneira de ser, interpretar e julgar a vida e as pessoas conforme novas circunstâncias iam acontecendo em suas vidas.
Assim, deveríamos aguardar, Ao Longo do Tempo, como o presente pretende se apresentar. Acho as hipóteses cansativas no sentido da urgência que pedem para nós nos adaptarmos ao contínuo desconhecido.
Somente a história cristalizada, entre as linhas, poderá nos contar ” afinal o que foi que aconteceu com a gente? “A Procura do Tempo Perdido”, um exemplo possível!