Eu estava na sala de espera quando ele entrou, acompanhado da filha. Uma dentista havia me telefonado dois dias antes explicando o caso (nesta profissão, as pessoas são chamadas de casos). Pelo relato da colega e pelo pedido de atendimento urgente, imaginei que fosse algo mais grave. A moça mostrava-se aflita, mas falava com desenvoltura e clareza. Ele nada falava. Entrou, cumprimentou-me com um aceno de cabeça e deixou-se cair na poltrona. Aparentava uns 60 anos. Vestia uma camisa amarela de linho, amassada, e uma calça jeans suja e folgada nas pernas. Ele parecia saber que estava seriamente doente.
Seguiram-se os ritos hipocráticos: anamnese e exame físico, os ditos pilares da prática clínica, que nos convertem em icebergs dotados de um estoicismo instrumental. Precisamos ser impassíveis e objetivos. O desejável é habitar o vago limiar entre a firmeza e a amabilidade. E eis que se confirmaram as minhas suspeitas iniciais: ele certamente tinha uma lesão maligna, primária ou metastática. Voltei-me para os dois à minha frente e afirmei, categórico: precisamos biopsiar. O mais rápido possível. Amanhã mesmo.
A cirurgia ficou marcada para um sábado de manhã. O paciente mostrava-se ainda mais apático e dolente do que no primeiro dia. Prostrado na cadeira, fitava um quadro na parede. Não pronunciava uma só palavra. Seu corpo fora arrastado até ali, mas seus olhos baços denunciavam que sua alma estava longe.
Campos cirúrgicos, mesa cirúrgica, luz forte no rosto, antissepsia, gaze, anestesia, bisturi. “Não se mova! Fique quietinho! Isso vai ser rápido! Aspire, Daniela! Vire o rosto pro outro lado! Aspire, Daniela! Sente gosto de sangue? Um minuto, aspire aqui! Está quase acabando. Já vou suturar. Pronto, acabou! Está tudo bem? Sente dor? Que ótimo! Já vou liberar o senhor!”
Um ato. Duas visões. Eu sou o profissional: a razão. Represento a ciência fria e lógica. Mas que afortunado sou eu, que aprendi a gravitar entre a comiseração e o pragmatismo. Para ajudá-lo, eu preciso me vestir de racionalidade. Não posso ser como Jerome Littlefield, o personagem de Jerry Lewis que me fez rir compulsivamente numa Sessão da Tarde. Na comédia americana de 1964 “The Disorderly Orderly” (toscamente traduzida no Brasil como “O bagunceiro arrumadinho”), o formidável Jerry não consegue ser médico porque sente e absorve todos os sintomas dos pacientes. Ainda me lembro de vê-lo fazendo caretas e se contorcendo todo ao ouvir os relatos de uma senhora sobre a sua vesícula perfurada. Jerome sofria de um transtorno psiquiátrico, uma espécie de empatia desmedida e patológica. Orgulha-me ter logrado a difícil empatia calculada.
No entanto, caro leitor, para aquele paciente de olhos tristes debaixo do campo cirúrgico, eu era um hecatônquiro de quatro braços. Um gigante com a lâmina reluzente a cortar-lhe a carne. A impingir-lhe a impiedosa verdade. Eu era o dono do seu destino. Da sua vida. Dos seus sonhos. Eu daria a palavra final diante das incertezas rondantes. Inclemente, eu lhe cortaria o último fio de esperança. O meu modus operandi sutil e escrupuloso não seria suficiente. O meu sublime gravitar entre a piedade e o pragmatismo ainda resultaria áspero e cruel. Não, ele não me disse nada disso, mas pode ter sentido algumas dessas sensações conspicuamente humanas.
Três dias após a biópsia, fui informado de que o paciente fora internado. Estava anêmico, fraco e não conseguia comer. Antes de atendê-lo, os médicos já haviam identificado lesões supostamente malignas no cólon, fígado e pulmões, às quais se somara a lesão na boca que motivou a indicação ao meu consultório de Estomatologia (é como se designa a parte da Odontologia que se ocupa das doenças da boca).
O laudo do laboratório chegou às minhas mãos em dez dias. Carcinoma: o tipo mais comum de câncer de boca. O paciente permanecia internado, agora na UTI. Informei o resultado à filha. Com resignação, ela disse que já o esperava, mas que tinha fé em Deus que seu pai se recuperaria: “Ele é forte, vai voltar pra casa em breve” — afirmou a moça, com a voz trêmula. Num sábado ensolarado, logo pela manhã, exatamente duas semanas após a biópsia, minha secretária me encaminhou uma mensagem de WhatsApp: “Por favor, avise ao Dr. Luciano que o meu pai acaba de falecer.”
Passei por isso tantas vezes em quase 30 anos de Estomatologia. Notícias duras. Negação. Desesperança. Morte. Vida. Sobrevida. Por que aquele paciente era diferente? Pela localização, era um caso raro (continuo a chamar as pessoas de casos), interessante para a ciência. Poderia investigar mais a fundo: seria primário? Seria uma metástase? De qual órgão? Poderia apresentá-lo no próximo congresso. Depois, escreveria o artigo e o publicaria numa revista prestigiada.
Renunciei a tudo isso. Abdiquei da minha vaidade científica. Escolhi não profanar os sentimentos da família. Escolhi não exumar o corpo do meu paciente num auditório de congresso. Eles não o conheceram como eu conheci. Eles poderiam não o respeitar como eu respeitei. Decidi guardá-lo só pra mim. Guardar aqueles olhos tristes como o livro que me ensinou a ser mais humano do que cientista. Guardar aqueles olhos tristes como o oráculo que me ensinou e me ensinará a ter compaixão por todos os olhos tristes que ainda terei de encarar.
Goiânia, março de 2021
Luciano, por que há tantos médicos que escrevem bem? Porque penetram a poética do sofrimento. Que haja muita luz no seu olhar.
Tocante, a valorização da empatia, a prevalência do Humano. Uma crônica nobre, daquelas feitas para permanecer.
Luciano, que texto! Você anda por uma trilha estreita entre a competência científica, a empatia, a sensibilidade, a potência da escrita. Caminho difícil, escolha que requer equilíbrio entre tantas habilidades! Parabéns, belíssima narrativa, muito comovente.
Luciano, o difícil e quase impossível caminho do médico, que sem abandonar a (nunca completamente) conquistada lógica científica, não a usa para se defender dos seus próprios afetos, e pode então, ficar perto, presente, desde a sala de espera. O médico, também um caminhante… A crônica mexeu comigo.
Além da escrita competente, sinalizar valores humanos, como respeito e compaixão, é uma dádiva que nós, leitores, só temos de agradecer, principalmente pela situação dramática que o país vive. Parabéns, Luciano.