O papo nonsense corria solto quando a história de Chapeuzinho Vermelho veio à tona. Por certo, os goles de carménère tiveram participação no fato. Dizem que Baco inspira a mente a devanear. Quando vi, estava eu cotejando e divagando por aspectos filosóficos, éticos e morais. Como é que pode a vovozinha morar sozinha num lugar isolado? Por que não morava com a família? E a Chapeuzinho, então? Uma criança pela estrada afora, sozinha, levando doces para a vó que morava longe. O caminho era deserto e ainda tinha um lobo mau passeando ali por perto. Que espécie de mãe permitiria isso? Era um absurdo.
No dia seguinte, refeito dos arroubos etílicos, pensei: que historinha interessante. Curioso contumaz, fui escarafunchar a internet. A Wikipedia (que parece saber de tudo) me contou que a fábula é muito antiga: teria origem nos contos de fadas europeus do século 10. Continua a Wiki: a primeira versão, Le Petit Chaperon Rouge, foi escrita no século 17 por Charles Perrault e a mais conhecida, no século 19, pelos Irmãos Grimm. Até aí, tudo bem. Fiquei boquiaberto quando descobri que Guimarães Rosa e Chico Buarque escreveram versões sobre o conto. Que segredo teria essa história pra atravessar séculos e despertar o interesse do Rosa e do Chico? O negócio foi ficando instigante.
Ouvi a historinha novamente pelo Youtube. Veio um frescor de infância. Lembrei-me do disquinho de vinil colorido de onde a escutei pela primeira vez. Foi bom recordar as falas do lobo matreiro, da Chapeuzinho com sotaque carioca e da vovozinha com voz de uma anciã de 90 anos. Mas a racionalidade incômoda dos adultos me trouxe um cenário desconcertante. A mamãe, Chapeuzinho Vermelho, o lobo, a vovozinha solitária, os caçadores, todos eram personagens de um filme que trespassava as fronteiras do óbvio e, de fato, justificavam as reflexões da noite anterior.
Examinemos a mãe. No começo, ela pede à filha que vá à casa da vó levar-lhe uns mimos, pois a velhinha estava doente. Benevolência ou crueldade com a idosa que vivia sozinha, numa casa erma, junto à curva do caminho? Vou me abster. Julguem vocês! E permitir que a menina percorresse sozinha um caminho longo e sombrio, se arriscando a ser devorada pelo lobo: um desatino? Tenho um palpite: pedagogia comportamental. Suspeito que a mãe teve a deliberada intenção de que a filha aprendesse a se defender do mundo atroz passando por um perigo real. Ah! O tênue limite entre soltar e proteger: um dilema tão atroz como o próprio mundo.
Quanto à Chapeuzinho Vermelho, seu comportamento é tradicionalmente descrito com intuito admonitório. Ela é a menina incauta que desobedeceu à mãe e, por isso, caiu nas garras do lobo. As fábulas cultuam esse maniqueísmo moralizante. Gosto mais da Chapeuzinho de Guimarães Rosa, que tinha uma fita verde no cabelo e atitudes mais humanas. Rosa entendeu a experiência da mocinha na floresta como um rito inevitável da existência. A menina vivenciou uma oportunidade para a aquisição do juízo, do arbítrio, da sua percepção de mundo. O encontro com o lobo era o encontro com sua sexualidade nascente, seus desejos e a sua própria vida. Sujeito arguto esse Guimarães Rosa.
O lobo é o personagem mais interessante (o malvado é sempre mais divertido). Charmoso como Jean-Paul Belmondo, ele não é apenas mau: é o tipo sedutor, espirituoso, com uma dose de sadismo. Um anjo-poeta: “Há framboesas mais vermelhas do que a cor do seu chapéu. As borboletas azuis são pedacinhos do céu”. Que mulher resistiria? Com Chapeuzinho, o lobão quis saborear o jogo da sedução, brincar com a vítima antes de devorá-la. Ele poderia simplesmente comer a menina (inclusive sexualmente) para satisfazer o seu instinto carnal, mas não lhe seria suficiente. Ele tinha outros desejos umbrosos, pois tem dimensão humana e não animal. É um lobo-homem lascivo e perverso.
Essa história teve 2 finais: um feliz e um triste. No que conheci, tudo acabou bem: o lobo mau sucumbiu com um tiro na testa desferido por um caçador valente. Naquele tempo, os caçadores matavam, livremente, lobo, onça, paca, tatu e cotia. Hoje, dez séculos mais tarde, há quem defenda a caça esportiva dos bichos irracionais (mas isso é outra história). Como estava dizendo, o lobo morreu, a Chapeuzinho escapou ilesa e aprendeu a lição, a vovozinha ressuscitou e os caçadores triunfaram. Poucos sabem, mas a narrativa de Charles Perrault não foi assim tão azulzinha. Na versão francesa, o lobo sádico e astuto comeu a vovó como prato principal e a netinha de sobremesa. Impiedosamente real, como a vida.
Independentemente de qual final prefiram os leitores, a historieta aparentemente despretensiosa e inocente de Chapeuzinho Vermelho serve de pano de fundo para perscrutarmos o comportamento humano, nossos medos, escolhas, desafios, as crueldades explícitas e ocultas e o inexorável mal que habita este mundo desde sempre.
Que leitura deliciosa. Não entendo como o tal Freud tão perspicaz em analisar histórias verdadeiras (e alguma inventadas, ou mal sucedidas, mas não bem contadas), tenha omitido Chapeuzinho Vermelho, este clássico compêndio psico-analítico tão gloriosamente analisado nesta crônica. Prezado autor. Deve haver outras histórias escabrosas. Por favor, disseque-as para nós.
Eder
Adorei a leitura, o relato da complexidade da história, e os comentários do Eder. Escapou a Freud, mas não ao Leonardo. Queremos outras.
Luciano, lembrei que Chapeuzinho Vermelho, o Lobo Mal e a Vovó estiveram presentes em nossas vidas, minha e de minhas três filhas, quando elas eram crianças. Fazíamos teatro, os personagens ao vivo. Provavelmente, eu era o Lobo Mal… E tinha uma música, que transcrevo:
“Eu sou o Lobo Mal,
Lobo Mal,
Lobo Mal.
Eu pego as criancinhas,
pra fazer mingau.
Hoje estou contente,
vai haver festança,
tenho um bom petisco,
pra encher a minha pança”.
E a gente dançava, representando o lobo mal,. Tinha outras canções, mas me lembro é desta.
Pode ser a música do Chico Buarque?
Uma análise envolvente e reflexiva, com um toque de personalidade. Essas narrativas, mesmo aparentemente simples, podem nos levar a reflexões muito profundas. Adorei as referências sobre às origens do conto e espero ler mais sobre outras historietas através do seu olhar.
Prezado Luciano, só tenho a dizer que seus textos estão cada dia mais envolventes e bem sofisticados do ponto de vista literário. Parabéns pela crônica. Continue nos brindando!
Luciano e amigos, a história do Chapeuzinho Vermelho, o Lobo, a Vovó nos traz a questão dos arquétipos, ( Yung), arraigados aos contos ditos para crianças. Aspectos que me fazem pensar, está em cada ser humano do berço à morte. A crônica publicada foi fundo em mim. Fico feliz. Bom fim de semana a todos!
Luciano, adorei sua leitura. Você fez o que pedimos para o leitor não fazer: furou o pacto que o escritor faz com o leitor: suspensão de descrença, para garantir o entretenimento. E ao fazer isso nos contou uma história deliciosa, cheia de humor, entretenimento garantido, cheio de ironia e de graça. Espero outras, gostei da brincadeira.
Oi Luciano, por isso são eternos estes contos, Bruno Bettelheim os trouxe para a psicanálise e você nos traz uma crônica jornalística atual com humor e perspicácia. Boa leitura!
Agradeço a todos os colegas e leitores pelos gentis comentários.
São palavras muito incentivadoras.
Que sigamos nos alimentando dessa fonte inesgotável de prazer e conhecimento: a nossa querida literatura.
Abraço afetuoso a vocês.
Muito interessante essa escrita ao mesmo tempo reflexão. Um moto contínuo entre a história infantil e o que ela faz ao cronista. Uma revisitação da literatura como transformadora de valores. Gostei muito e, principalmente, desse leve toque de humor. Parabéns, Luciano.