Ele demorou alguns meses para voltar ao zoológico. Uma vez foi o
tio que convidou. Tiago enrolou sem responder. A lembrança da onça
aparecia bonita, ao mesmo tempo, assustadora. A avó era a onça, dissera o
avô. Outra vez, a escola programou um passeio. Tiago tanto quis estar mal
que sentiu o corpo quente e mole, a garganta doendo. Aumentou o buraco
que tinha aparecido depois da morte da avó.
Antes, sempre que ficava doente, a mãe o deixava com os avós para
ir trabalhar. Dessa vez ficou em casa. A mãe concordou. Vai perder o
passeio do zoológico, é uma pena. Mas fazer o quê?
Avó-onça, ele exclamou mentalmente e quis sorrir, lembrando da
tarde que tinha passado com seus avós no zoológico. Pela primeira vez
Tiago viu uma onça. Olhos enormes, corpo pesado repousado sobre as
pernas dobradas no chão, uma paz de fera bem alimentada que podia ser
traiçoeira. Nenhum rugido.
Avó-onça! Tiago já era homem casado quando essas palavras
surgiram de novo em sua cabeça. Apesar de tarde da noite, a mulher não
estava em casa. Precisava refrescar as ideias, respirar.
Tiago já tinha voltado várias vezes ao zoológico. Levava o filho
pequeno. Tinha paixão pelo elefante e encarava a onça com tranquilidade.
O susto, o medo, a dor daquele dia com os avós paternos, tudo tinha ficado
distante. Seu pai dissera muitas vezes: essas coisas acontecem.
Tiago passou a madrugada sentado na cama até que ouviu o barulho
da chave na porta. Logo a mulher estava parada na porta do quarto.
Onça, pensou ele. Quem via a tranquilidade no rosto da esposa não
imaginava o tamanho da discussão, a gritaria e as ofensas que tinham se
feito poucas horas antes. E foi assim, sem qualquer tensão no rosto ou na
voz, que ela falou baixinho, olhando nos olhos do marido sem medo, sem
ameaça. Uma onça bem alimentada, bonachona. Quero me separar, não
estamos bem, acho que estou gostando de outra pessoa. As frases iam se
embaralhando na cabeça de Tiago.
Mulher-onça! Podiam passar dez, vinte, trinta anos. A cena do avô
com a faca ensanguentada na mão vivia nele como uma coceira que vira-e-
mexe volta sem explicação e também sem importância. O pai tinha razão,
essas coisas acontecem. A fala do avô ainda no ouvido, como uma canção
de infância: “essa onça não grita mais”.
*Inspirado em um conto de Dora Martins
Esses traumas….difícil não acabarem em sangue. O trágico é quando se repetem na mesma família.
O conto me abraçou e fui com ele… A gente se surpreende nele inteiro.
Só no fim a gente vê a faca ensanguentada (de verdade) na mão do avô… Não foi uma metáfora…
E Thiago, mata a mulher?
O conto não conta…
Ao ler os primeiros comentários, – sylvia e eliana,- confirmei o que havia compreendido.
Ao entender, percebi como estava bem escrito. Um suspense curto.! NAo precisa de novela nem de conto nem romance. Basta um curto texto muito bem escrito. Faca e sangue. Thiago fez bem em matar a onça-avo dentro dele!