Um ponto da eternidade, aquele exato momento situado entre dois longínquos segundos, em que tudo para. O parapente enche, desperta para o voo, começa a querer me puxar para cima, ameaça se transformar numa asa autônoma, invejosa talvez das gaivotas que flanam ao longe. E nessa parada eterna eu contemplo o azul das células, o tecido azul que se transforma no céu que tudo contem e acolhe. Peço a benção, retomo o fôlego e volto ao chão. Chão que me reconecta à regular e padronizada contagem do tempo. Foco em meus braços, vigilância muscular, atenta aos instintos selvagens da Folha.
É assim que costumo chamar minha asa: Folha, simplesmente Folha. É um belo nome, não acham? Bom, pelo menos sei que ela gosta e, nas longas conversas que temos quando estamos voando, costuma dizer que eu deveria me chamar Folhinha. Ora, seria bem melhor que Acrísio, ela insiste. Mas não concordo, estou contente em ser Acrísio: pelo menos ninguém confunde, nunca conheci outro.
Deixando o nome de lado, corremos para o voo. Vamos, salte comigo!
“Saltar do talude” não pegou. Convenhamos que “slope soaring” soa melhor. E é só entrar em modo ”soaring” que Folha começa suas ponderações, devaneios:
– Todo voo é uma busca. Os pássaros, nos mais das vezes estão à procura de comida. Buscam também por abrigo ou por encontrar um par. E vocês, humanos? Porque voam? Querem ser pássaros e encontrar alimentos ou amores? Ou apenas ver o mundo de cima, sentir uma sensação de poder sobre pequenas criaturas?
Se deixar, Folha vai emendando uma frase atrás da outra. Por isso tenho uma técnica: um leve puxão no freio e mudança de direção num pequeno mergulho. Perceberam? Ela se agitou e parou de falar.
Minha mente volta ao controle. Me lembro do primeiro salto. Que medo! Reconheço o bom instrutor que tive. Conceitos, técnicas, como posicionar o corpo, como pular, voar, fazer manobras. Como escolher o local do pouso. Ah! O primeiro salto! Despertar a coragem adormecida. Vejo agora que ele era também um instrutor de coragem.
Será que esse prazer de voar está ligado a uma procura? Talvez, talvez possa ser mesmo uma busca, pensando bem. Folha solta um risinho de satisfação:
– Viu, eu sabia…
É, amiga, cada vez mais estou convencido que é uma busca. Só que, diferentemente dos pássaros, nossa procura é interna. Não é de frutos ou companheiras. É de encontro com o mistério divino que carregamos dentro de nós. A paz interior.
– Ah! Então vocês querem ser deuses…, replicou Folha, um pouco despeitada.
Menos, menos. Só queremos sentir Deus que está dentro de nós. Só isso, simples assim.
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A foto que ilustra esse conto, de João Paulo Tardivo, não é mera ilustração, ao contrário, o conto nasceu dela…
Gostei muito do conto, de Acrísio e Folha, dos diálogos. O final é lindo. Não conto aqui para não estragar a leitura. Bem vindo ao Clube.
Uma fotografia captura e eterniza um instante. Mas, mais que isso, mobiliza nossa imaginação e, por isso mesmo, começa a contar uma história. Ao admirar a arte de alguns amigos fotógrafos comecei a desenvolver esse exercício de escrita: os “Foto-contos”. As fotos funcionam como a alavanca de Arquimedes: “movimentam o mundo”.
A propósito, estou me deliciando com os excelentes contos e crônicas do Clube dos Escritores. Para mim foi um grande presente ter descoberto vocês. Obrigado e Abraços
Carlos,
Muito lindo o voar para dentro de si!
A Folha como um tapete mágico a nos levar pelos ares que
enchem o pulmão de liberdade.
Gostei!
abraço
Que conto bom! Bem-vindo, Carlos.
Carlos, sua Folha me lembrou o Fernão Capelo Gaivota, que de tão sábio, humilhou os homens, simples seres sem asas. Gostei que você puxou o freio, quanto menos ela palpitar, mais silêncio para encontrar o que estava procurando. Muito lindo. Bem vindo, Carlos
Lindo conto!
O vôo em direção à nossa alma é o mais belo.
Parabéns
Gostei desse diálogo com a asa/folha e a pergunta por que voamos. Porque ficar somente na terra é fatalidade e voar um lapso de liberdade?