Recolhia miudezas, perambulando pelas ruas com um carrinho de supermercado pintado de rosa e o rádio de pilha encontrado em sucata. Ir a depósitos de sucata consistia em sua atividade mais regular e formal, no mais, era livre.
A roupa variava conforme a estação; de algum modo, mantinha elegância na composição, com adereços como chapéus e écharpes, de brechó, e sempre sobrepostos de modo original. Algum observador mais atento, se houvesse, perceberia que se integrava à paisagem; quando as árvores exibiam galhos sem folhas, suas roupas eram de cor marrom-escuro; na florescência, usava chapéus coloridos com laços.
Ninguém sabia onde ou como morava, tampouco importava a quem a via passar com o olhar sempre à espreita, mas sem se deter no cotidiano da maioria. Estava em busca de horizontes outros.
Usava luvas, curiosamente, de boa qualidade e, com gestos de apicultura, ia apanhando objetos variados aqui e ali, que guardava no carrinho. Somente as crianças a distinguiam e lhe conferiam pessoalidade. Aproximavam-se dela e, uma ou outra vez, a ajudavam na tarefa; em silêncio, apesar da curiosidade natural delas, porque, de alguma forma, as envolvia no tempo do ritual, e as explicações pareciam supérfluas e desnecessárias.
Colecionadora de sensibilidade apurada, separava os pequenos objetos – sempre pequenos -, segundo textura de materiais, brilho, opacidade, cores, formato, aspereza, suavidade. No fim do dia, tirava as luvas e tocava cada pedacinho de mundo com dedos ágeis, lavava um a um e os cheirava, sentia o gosto, acariciava, estudando suas peculiaridades, juntando e rejuntando, com devota atenção.
Alguns seriam devolvidos à natureza, jamais às ruas; outros iam formando painéis e, a cada mês, alternava aqueles que ficariam em uma tábua suspensa de sua minúscula casinha perto do rio. Nela, com letras recortadas de uma placa de alumínio, lia-se: Altar dos Sonhos Desencontrados.
Lindo texto! super delicado! Um olhar pela fresta do cotidiano…
‘No fim do dia, tirava as luvas e tocava cada pedacinho de mundo com dedos ágeis…´ [olha que frase!].
Que lindo texto! Gosto do olhar miúdo da catadora e da escritora, atento às quinquilharias, tão ricas em história.
Conheço a figura, mais uma de muitas, que são, de algum modo, as donas da rua.
Esta, especialmente delicada, gentil e extremamente elegante, quase um desenho japonês.
Lindo mesmo . Delicadeza de olhar humanizador. Tão límpido o texto , flui diante da gente na composição harmônica e elegante. Além de nos descansar os olhos . 😊
Concordo com tudo que Zzzlot, Sylvia e Áurea escreveram. Acrescento Altar dos Sonhos Desencontrados, maravilha!!!
Liliana,
Duas almas: uma de colecionadora outra de escritora. Junto-me à Áurea na análise da escrita poética.
Muito lindo!
Colecionar sentimentos táteis é um sonho encontrado.
Dois objetos diferentes é ver um único sonho: a vida diversificada em seu brilho, cor, forma,e matéria.
Que linda forma de olhar para o cotidiano, tanto da colecionadora de palavras e sonhos como a da colecionadora de objetos e sonhos.