Blog Clube dos Escritores Eder Quintão Partida

A partida,
por Eder Quintão

Há algumas décadas é costume nossos encontros familiares pautarem-se pelos casamentos, mas, finalmente, todos casaram-se, os filhos foram nascendo em profusão – tanto que nem é mais possível lembrar todos seus nomes com os batizados tornando-se irrelevantes – e esses ainda tiveram mais filhos que geraram bisnetos, além, é claro, de algum divórcio esporádico, eventualmente com certo sabor de escândalo que faz a vida familiar deliciosa, mais rica em mexericos, essenciais para nosso entretenimento. Proles grandes carregam escândalos proporcionais; caso contrário imperaria o tédio.

As viagens seriam habituais na nossa terra natal, mas a essas alturas da existência tornaram-se escassas: com o passar de tanto anos as chances são invariavelmente serem elas apenas para despedidas pelos sobreviventes, obrigatórias muitas – voluntárias, cada vez menos para dizer a verdade – e a expectativa é de sobrarem bem poucas para testemunhar à medida que nossas idades avançam e os mais velhos partem – os idosos, para ser mais preciso – sobrando aqueles que se equiparam a nós em senilidade. Com isso, impossível antever quem parte primeiro e qual será a próxima obrigação: se nossa, ou deles…

Naquele sábado quente de verão foi a vez de nos despedirmos de tia O., viúva de tio LK.

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– Mas que infortúnio! Sábado é para levar as crianças ao clube de campo, pegar um cinema à noite! Ainda ter que deixar as crianças com a babá dois dias seguidos, tendo que dormir no Itatiaia e pegar essa estrada longa de volta no domingo? Uma canseira para levantar cedo na segunda:  mais um dia exaustivo de trabalho, incluindo levá-las à escola! Será que temos de fato que ir?

– Ora, Ecê Roquí, eu achava que infortúnio era a perda da tia, irmã de sua falecida mãe, e V. ainda sempre me disse que morou com seus tios uns bons anos de infância feliz! Mas para V. tristeza é empreender a viagem!

– Não. Impossível que lhe dissesse isso. Foram só alguns meses vividos lá… Além das férias escolares, naturalmente…

– E o que dirão todos os parentes? Irão os que moram em todo o vale e só V. não vai? Fica muito feio. Vamos sim. Dará tempo. O féretro sai para o cemitério após o almoço e nem precisaremos madrugar para sairmos de São Paulo e sermos obrigados a velar o corpo na casa da tia ou na igreja. Para quem mora longe a desculpa é boa de irmos direto ao sepultamento.

– Sim mas voltar em igual pernada ao anoitecer do mesmo dia? Impossível! Teremos que dormir lá de qualquer maneira.

– Bom, pelo menos não se tem mais que subir o morro todo carregando ataúde: agora a cidade progrediu tanto que tem até carro funerário. Além do mais ela mora na parte alta; o caminho ao cemitério é até bem curto.

– Vou levar guarda-sol: o sol é escaldante e lá não há sequer árvore para uma sombra amena; os túmulos estão apertados entre passagens estreitíssimas e completamente irregulares, verdadeiros labirintos. Garanto que para chegar à sepultura tem que se esgueirar entre muitos jazigos, senão, ter que subir sobre eles.

– Ninguém vai de guarda-sol: leve só chapéu. Chover é que não vai, garanto. A cerimônia é curta e de lá para o hotel, um bom banho, descanso e jantar. Dará até um jeito de se pegar uma boa piscina, ou a sauna que V. tanto gosta…

– Mas francamente o que não se aguenta é ouvir sermão fúnebre de pastor evangélico. Os padres são muito mais econômicos: as preces são em latim e a benção ao corpo, curta, com a vantagem de ser incompreensível. Mas esses pastores? Deleitam-se em falação sem fim; pior ainda quando sentem-se obrigados a demonstrar gratidão aos benfeitores mortos; investem pesado na exaltação aos defuntos com muito mais veemência em discursos de bajulação.

– É verdade. Mas para os protestantes, morreu, acabou. Se tia O. fosse católica ainda teríamos que voltar para missa de sétimo dia, completa, que dura pelo menos uma hora com falação de padre. …………………………………………………………………………………………………………………………………………………………

– Oi LG. como está nossa prima E.? Melhorou da coluna e da dificuldade para andar? Não veio?

– Hein? Ah! Sim, vai levando Ecê Roquí…  Vai levando como pode, não como gostaria.  Mas para andar até o sepulcro ficaria muito puxado. Fomos de carro até a casa de tia O. Até ajudei fechar a tampa do caixão. Deixei-a em casa de volta; essa caminhada entre túmulos em chão torto, irregular…  Fiquei com medo que caísse. A prefeitura precisa pavimentar tudo isso aqui.

– Bem…. Titia foi do melhor jeito…  Ir assim dormindo é muita sorte…

– É mesmo. E sorte maior é não ter que continuar vivendo todo esse drama das encrencas entre os filhos….

– Será que ela via o drama?

– Claro que via, ou…. Ela mesma criava-os. Eu acho que era esse o caso. A cabeça dela ainda estava muito boa para ficar alisando esse filhinho J., esse delinquente, esse estroina, mau caráter incurável. Além disso nossa tia prejudicava a própria filha mais velha e até os netos dela!

– E como estava a aparência de titia?

– A fisionomia de sempre… E nem parecia morta. Passaram-lhe ruge e batom… O cabelo bem arrumado, como ela sempre exigia. As empregadas vestiram-na a caráter com um vestido longo, bem branco, embora muito antiquado…  Põe antiguidade nisso.

– Ainda bem. Era tão vaidosa! Mas afinal não haverá desfile de modas nas alamedas do paraíso….

– Do paraíso? Acho que os chifrudos rabudos gostam de moda e recebem-na com festas… 

– E põe vaidade nisso meu caro.

– Mais do que isso prima MB.: ambiciosa! Dominante! Mandona! Isso sim.

– Mas, convenhamos, Ecê Roquí…. Devota. Bastante devota ao marido, à igreja evangélica….

– Claro que tinha que ser devota: basta esgravatar a lista de pecados, dos transparentes, que sabemos, e dos embutidos, que apenas imaginamos…. Afinal sempre foi braço direito, em total conluio, com o marido LK…. E esse não era flor que se cheira nos negócios…. E quanto mais devoção à fé, mais se pressente a carga de sentimento de culpa que carrega e o tamanho do temor de um juízo final. Ao contrário de minha eterna incredulidade, o que nutria sua devoção só podia ser temer o que esperar na vida que ela julgava eterna!

– E qual a última do mimado J.?

– Andou até preso por tentar comprar testemunhas…  Mas, V. sabe muito bem, não há rico que fique na cadeia se tiver bom advogado….

– Mas como pode pagar advogado? Não está quebrado?

– Em dólares!  Deve tê-los escondidos sob o colchão. Não tem mais nem conta bancária, tantas são as encrencas e dívidas com todo mundo. Processos na justiça por todos os lados; os piores são os trabalhistas: até trabalho escravos nas fazendas. Todo mundo aqui sabe disso.

– Puseram uma coroa de flores ao lado da cripta….

– Deve ser da Cooperativa de Laticínios, ou do Banco do qual titio foi gerente, talvez de algum parente nosso que não pode vir. Certamente da fazenda não é; de lá os empregados só mandariam coroa de espinhos……………………………………………………………………………………………………………………………………………..

– Meu bem. Repare a M….

– Qual delas?

– A mulher do S. Como envelheceu!

– Pior: é demência senil. Ele deve estar passando um mau bocado e ainda com poucos recursos. Sabe? Militar que se aposentou ainda no início de carreira, ganha tão pouco que não tem como pagar médico particular, muito menos enfermeira para cuidar dela.

– Bem. As netas e noras ajudam bastante. Afinal, nessa hora foi até uma benção eles terem tido tantos filhos….

– Benção? Não sei…  Não deram em muita coisa…  Será que aquele alcoólatra vem?

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– Oi NR.! Como está a fazenda? Continua tirando leite, criando galinhas?

– Leite sim…. Ainda temos pasto nas baixadas na serra. Galinhas? … Ovos? …. Suínos? …  Já se foi o tempo…. Ração está muito cara. Melhor é fazer reflorestamento.

– Reflorestamento com eucalipto? Estraga a terra…

– Isso é lenda…

– Nosso popular JC. veio. Ele é o único saudável nessa família de tia E.; sambista, tocador de gaita de boca, sempre bem-humorado dirigindo forró…. Em compensação sua irmã fanática religiosa e o irmão….

– …. Arrogantes. Muito arrogantes, a vida toda.

– Foi assim que venceram na vida, principalmente o P. Venceu a duras penas e sempre muito dignamente. Político honesto. O único que conheço nessa profissão. Garanto.

– Será? Honesto com passado ligado aos militares?

– Não tem nada a ver uma coisa com a outra. Não seja preconceituoso………………………………………………………………………………………………………………………………..

– A ML. e o A. estão ali. Ainda bem que vieram. Poderíamos ter vindo juntos.

– Muito divertida essa nossa família. Tem o A… Comunista… Tem o PR., meio fascista… Ou fascista por inteiro como diz o A. Tem o JC., o boêmio que diziam ser ovelha negra, mas que aprendemos com nossa maturidade ser o único sensato da família dele. Talvez o mais mentalmente saudável dos filhos de tia E.

-…. Que além disso jogava muita bola. Poderia ter sido goleiro profissional não fosse por tia E.

– …  Outra fanática religiosa…

– … Futebol…  Por falar nisso quem joga hoje NR.? Será que vai dar para a gente ver?

– Acho que sim. Difícil o enterro acabar depois das quatro. O jogo começa quase às cinco.

–  Botafogo e Vasco. Em São Paulo deve ser Palmeiras e Corinthians.

– Botafogo…. O time do tio LK. Ficava maluco quando jogava o Botafogo…. Cuspia, suspirava, batia com os cotovelos na mesa…  Lembra-se? E quando estava perdendo ficava andando na sala sem parar, o que deixava tia O., um pouco irritada. Afora isso, ela era só devoção a ele.

– Tio LK…  Seu querido filhinho J. tinha com quem aprender…  Quanta negociata deve ter feito tio LK….

– …. E enrolado a família toda…. Não prestou contas da fazenda que comprou do vovô. O dinheiro se foi…

– É mesmo. Mas, não se esqueça…O dinheiro do loteamento também ninguém viu…

– … E o tio NR., sócio dele? Só ganhou dinheiro quando o LK. se foi e após ter conseguido extinguir a sociedade da vida toda…

– … Claro…. Não foi mais roubado

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-…. Alô NM. V. parece tão bem e sempre bonita…

– Ecê Roqui… V. não muda nada…

– Como está seu irmão AT.?

– Más notícias. Nem conseguiu vir. Está tossindo muito e o exame deu mancha no pulmão que o médico disse não ser coisa boa. Vai ao Rio amanhã…

– É minha cara…  É o problema do cigarro. Quantos maços por dia?

– Dois…. Pelo menos e a vida toda…

– Prima NM…  Dê uma olhada na cara do J. Repare que nem olha para a irmã. É como se ela não existisse.  

– Mas é isso mesmo…  Para ele, ela não existe mais. Foi esquecida…E a tonta da irmã, espoliada e tentando apaziguar a fera indócil.  Mas, repare a cara da mulher dele. Patética, não lhe parece? Não sabe onde se esconder. Se cumprimentar a cunhada vai apanhar do J. em casa…

– Bate nela?

– Claro. Toda a vizinhança sabe que bate… E nas filhas também…

– Mas agora já são adultas…

– Sim mas dependem dele. A mais velha está ali…  Parece-me que com uma amiga, ali à direita dela…  Até que meio risonha.

– Mas repare bem Ecê Roquí: ela tem no fundo uma carinha triste. Também, com o pai que tem não podia ser diferente…

– Diga-me NM., tia O. sabia das agressões perpetradas pelo filho J?

– Claro que sabia. Quantas vezes a pobrezinha ia correndo à casa da sogra, em prantos, com equimoses na face e no corpo todo produzidas por aquele sádico, um demente! E sem ter ela com quem se socorrer, sem qualquer parente em todo o vale!

– Mas como é possível continuar com ele?  

– Respondo: V. pensa que é fácil sobreviver sendo uma mãe, do lar, sem profissão, com duas filhas adolescentes e raros familiares que residem longe em outro estado? Pior ainda, ela apanhava mais quando descobria as gastanças dele com outras mulheres, prostitutas inclusive, e claro que não eram poucas!……………………………………………………………………………………………………………………………………………..

– Bem, minha prima. Veja que ninguém chora nesse enterro. Dá para entender…. Nem a filha dela, nossa prima D.!  Acho que se sente vingada por tudo que a mãe fez contra ela. Mas ainda teve a bondade de trazer a família toda, marido e até os netos para se despedirem da avó. E o genro de tia O. que tinha boas razões para detestar a sogra que se opunha ao casamento com médico pobre, filho de costureira…  No entanto, sempre tratou os sogros com toda consideração e carinho. Seguramente ele não merecia que a sogra fizesse tudo isso com a mulher e os filhos dele!

– É mesmo, mas as fisionomias são mais de alívio do que de padecimento…  Repare bem: não têm como esconder o que devem sentir de verdade, ainda sendo condescendentes e compreensivos com essa avó desalmada.

– Serão faces de padecimento? Não me parecem, ou então são muito masoquistas: tia O. não dava a mínima para eles, só para as meninas do mimado J. Nem quis mais vê-los depois que tio LK. se foi…………………………………………………………………………………………………………………………………………….

– Meu bem: cale-se; o pastor vai falar.

– Quem? O reverendo Messias? (Devo lembrar que é o único nome verdadeiro desse relato. Efetivamente era assim que se chamava nosso finado pastor). Bom cara esse. Tem mais jeito é de dançarino de tango do que de pastor evangélico: com aquele bigode todo e sempre alegre, jovial, bom papo, evitando fazer proselitismo, ou pregando religião. Pastor sem bíblia…

– E quem é a turma de moços e moças de roupa preta que apareceu atrás do Messias?

– É o coral da igreja. Vai cantar alguma coisa.

– E mais essa… Só faltava cantoria com esse calor e o jogo de futebol começa logo! Não basta o discurso? E se ainda nosso H. resolver abrir a boca?

– Aí estaremos perdidos. Não se verá jogo algum. A pregação religiosa dele não tem fim, embora não conseguisse converter a própria mãe e irmãos à seita dele.

– Talvez não tenha tido sucesso porque parentes muito próximos conhecem melhor a alma do pregador do que imagina o rebanho de ovelhas………………………………………………………………………………………………………..

– Mas, diga-me LG.: tem mais gente nessa cripta?

– O marido LK. de tia O… E a filha, nossa priminha AM…

– AM.! Que tristeza!  Fosse hoje não teria morrido… Quinze aninhos de idade e tão linda, meiga e inteligente. Que amor era nossa AM. Não consigo esquecê-la. Um tumor benigno de área cerebelar que hoje se retira precocemente; rara intervenção neurocirúrgica que não deixa sequelas… E se foi, só pela negligência paterna. Tio LK. preferiu curandeiros do que neurocirurgião qualificado. Quando a operaram, finalmente, era do tamanho de uma laranja dentro da cabeça! O fanatismo religioso tem um preço muito alto. É quanto custam as crendices!

– Ecê… Imagine só se nosso papa-defuntos Vadoca estivesse vivo! Enlouqueceria mais do que já era se não pudesse botar as mãos no caixão de titia ladeira acima….

– Não faria diferença. Mergulharia no carro fúnebre e iria agarrado à alça do ataúde até o túmulo…………………………………………………………………………………………………………………………………………..

– Mas A., fiquei surpreso! A cerimônia foi até bem curta, melhor do que eu esperava. Seria por causa desse calorão? Ou então, será porque titia não deixou muita saudade? Opto por essa última porque cifrão ela dispunha e de sobra para ser retribuída com bons sentimentos….

– Isso não se sabe…. Só o futuro dirá….

– Ou jamais…  Há enterros para lembrar…  E aqueles para esquecer…

-Talvez meu caro…. Talvez…. Sempre serão esquecidos. Sempre! Pergunto se V. se lembra ou dá alguma importância em se recordar ou ainda querer saber quem eram aqueles nossos tios e tias que desconhecemos, aqueles dos retratos na parede da sala de estar da casa de nossos avós RF. e JR.? Por isso se fazem as missas de sétimo dia; no oitavo, abandonam-se os mortos…. A não ser aqueles que deixam herança polpuda: deles lembra-se até o término da partilha ou estica-se a recordação até a missa de um mês, e quanto melhores os bens terrenos é possível mantê-los à memória até a missa de um ano. Só nos recordamos até nosso próprio fim dos que se foram mais jovens do que nós. Por eles mantemos sentimentos, diria até infinitas saudades. Sábias missas essas…. 

– Vamos almoçar?

– Acho que sim. Veja quem vem com a gente.  Vamos para o Itatiaia. Uma boa cerveja gelada faz bem nessa hora. Missão cumprida. Até a próxima…. Mas, espero que em futuro longínquo….

– Se chegarmos a tempo conseguiremos assistir Botafogo e Vasco. Não se perde uma partida como essa!

Um comentário

  1. Caro Éder.,

    li o seu conto “A Partida”. O tema é deliciosamente tratado.. A conversa bem a propósito da ocasião, caipira, conversa de dois viciados em futebol, o defunto, coitado, ninguém dá bola e chorar muito menos.
    É um ótimo espaço , os velórios, para rememorar pessoas vivas ou aquelas que morreram. Sao as mesmas pessoas que já se encontraram em outro velório. É sempre igual e v. retrata com humor esse momento.
    Tenho uma ressalva: achei comprido demais. Gostei do conteúdo da introduçao: how true!
    (Acho que ao escrever, esperamos retornos e, as vezes chegam com algum senão… certo ou errado, me desculpe desde já!)

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