Manhã de outono, sábado. Laura tinha dormido bem, lia o jornal. Pelo interfone avisaram que o tapeceiro estava subindo com a poltrona que ela tinha mandado restaurar.
Semanas antes, descia a rua devagar quando a viu: gasta, as estruturas desalinhadas, as molas explodindo restos de tecido por baixo do assento. Olharam-se, comovidas pelo encontro. Quem diria? A velha poltrona, a bergère antiga dos avós, se oferecendo, “MÓVEIS USADOS”, dizia a pequena tabuleta sobre a porta.
Como teria ido parar ali? Cara e jeito de suas gentes, lembranças dos alfarrábios nas mãos do avô sábio, óculos na ponta do nariz, as memórias a encantavam.
Negócio feito, seria preciso mudá-la, marcar o seu estilo como se marcava o gado na fazenda. Afinal, de agora em diante ela é que iria sentar ali sua velhice quase centenária – e lúcida – ela também faria parte de sua historia: “Ficarei impregnada em suas entranhas para quem quiser um dia recuperar minha passagem pelo mundo”.
– Onde a senhora quer que coloque?
– Ali no canto, de costas para a janela, um pouco mais virada… Assim, está bom. Ele agradeceu a gorjeta, Laura fechou a porta.
Estava deslumbrada: novinha, lindíssima, tinha repetido as cores das folhas outonais do tecido, cenário de passado, e do futuro que se propunha a partir dali. “Mas não invisível para quem sabe ver.” E seu olhar era de fascínio. Aproximou-se, iluminada pelas lembranças que emergiam com nitidez de cada detalhe do tecido.
Alisou com delicadeza o dorso da poltrona. De repente, Tia Almerinda, sentada naquele jardim de folhas coloridas, pano de fundo para suas memórias, amamentava um bebê. Laura não via o seu rosto, sabia que era Augusto, o primo que acabaria na ponta do revolver, ainda menino, drogado e aidético, o que nunca chegara a saber muito bem, a Tia já andava longe nesse tempo.
Sorria para a criança, ajeitava o seio em sua boca, cantarolava com enlevo, o olhar suave ainda infantil deslizava pelo corpinho do filho, entregue, confiante.
Aquela cena, que Laura tinha acompanhado todos os dias, marcara suas memórias para sempre: Tia Almerinda, quase tão jovem quanto ela, casada com Tio Antônio, vinte anos mais velho:
– Trocou a boneca pelo filho, menina! comentava-se na família.
– Foi sequestro, Antônio? Você raptou a noiva na porta da escola?
Ele se divertia com a pergunta recorrente, apaixonado pela delicadeza do rosto, “pintura de Boticelli”, dizia, linda, amorosa, doce. E dócil. Tia Almerinda…
Ali sentada, envolvendo o filho nos braços, confirmava a figura de madona renascentista. Ainda não sabia das amantes que viriam em breve disputar o marido com ela. Nem das noites solitárias andando pelo casarão silencioso, que ele insistia em manter.
Nem imaginava que a professora de piano contratada para lhe fazer companhia se tornaria sua amiga e confidente. Que juntas iriam vibrar com os primeiros passos de Augusto, juntas iriam partilhar a vida até a morte.
Laura sabia, sabia da tristeza que veio depois da cama vazia, da solidão sem prazeres, crescendo como erva daninha, pouco a pouco se enroscando na pele da tia ainda tão jovem.
– Você se lembra de tanta coisa, que memória, a tia menina falava baixinho para não acordar a criança que agora dormia aconchegada em seus braços.
E sorriu com a doçura de antes. Laura tentava não perdê-la, mas a figura foi se apagando.
A bergère, vazia, se propunha a outras viagens. Tio Antônio não lhe chegava inteiro, ela buscava-o em seus arquivos, mas, naquele momento, não conseguia fixá-lo sobre a folhagem do tecido. Faz tanto tempo… e a mágoa por tanto sofrimento da tia querida explicava a ausência de sua fisionomia: pouco dele tinha sobrado em sua memória.
Uma total letargia mais uma vez invadia corpo e alma de Laura. Tem sido assim, esse estranhamento, desde que se envolveu com palavras memorialistas: tentava agora reconstruir a historia da família, quase um século de passado se oferecendo como inspiração a mais um romance. “Certamente mais um sucesso”, como os críticos previam nos jornais literários.
O som claro e silencioso de um piano trouxe-a de volta. Apenas o som. – “Estranho! Não há piano aqui no prédio, nem nas casas vizinhas”… A música de Marcela… A professora dedilhava os prelúdios de Chopin com talento enorme, inconfundível.
Depois de sua chegada, Tia Almerinda tinha passado a sorrir primaveras, logo o riso franco pintou a palidez das tantas tristezas somadas. O piano e Marcela foram sua alegria para as longas noites de solidão sem o marido.
E foi também numa bela manhã de outono que elas partiram: sem dúvidas, maduras para o amor que frutificara entre elas, corajoso, avassalador, insuspeitado. Augusto seguia junto, também deixava o pai e suas mulheres, pobre Augusto, destruído pouco a pouco por aquela realidade jamais esperada.
“Foi muito bom ter comprado este pedaço de mil histórias por contar dentro dele.” Tantas alegrias, tantas tristezas, angústias, tantos sentimentos de personagens reais se oferecendo, aquele rio de lágrimas difícil de conter.
Olha demoradamente para sua renovada cadeira antiga quase com veneração: pode resgatar ali pérolas preciosas – basta saber ouvir em silêncio suas falas.
Liga o computador, fecha os olhos, desliza os dedos pelo teclado. As palavras se embaralham em seus dedos ainda ágeis. Com muito cuidado reconstroem o Tempo.