Sagrado coração de Jesus,
por Bettina Lenci

Vi o coração de Jesus à mostra, rasgado, a testa muito branca respingada com o sangue da coroa fincada em sua cabeça. Olhava para mim com olhos de vidro preto.

Vi um coração que batia, veias de verdade, aberto com duas garras de alumínio, uma de cada lado, apartando a pele que o cobria antes do cirurgião inserir profundamente uma faca para operá-lo.

Vi uma pessoa, um passo após o outro, depois mais outro, mais outro e muitos outros mais, inconsciente de que o coração bate para que possamos atravessar a rua.

Vi um coração de papel brilhante, vermelho, desenhado sobre cartolina branca com os dizeres: “Eu te amo. Volte logo.”!

Vi alguém mandar um coração montado com os quatro dedos da mão, dobrados sobre si, vazio o centro, flutuando no nada; comparo-o com os macacos que não vêm, não ouvem, não falam, mas dizem te amar assim mesmo.

Destes corações que me recordo, cada um me conta alguma coisa. O de Jesus me fez recuar, com a dor de seu amor não correspondido por nós mortais.

O medo de mim se apossa quando penso que o coração exposto ao cirurgião poderia ser o meu.

O coração delineado à maneira dos adolescentes, geralmente uma flecha transpassando-o e gotas de sangue respingando, amando sem restrições,  ainda me remete à juventude. O coração de quatro dedos é uma macaquice vazia de amor.

Corações pretendem simbolizar Amor e muita imaginação é necessária para entender do que se trata. Não deixa de ser uma versão poética simplificada que pode ser substituída por alma para traduzir o indecifrável “sentir com o coração” (qual deles?) e transfigurá-lo como sendo sincero, verdadeiro, piedoso, doloroso, sensível ou mesmo inútil. Imagens toscas para traduzir sentimentos que não sabemos como expressar de outro modo.

Traduzir amor de outro modo, ausente o símbolo que poderia expressá-lo silenciosamente, é tarefa e desafio para qualquer um de nós.

Eu não saberia como descrevê-lo a não ser transpondo-o à imagem do Coração de Jesus. Um coração coberto de pele pregando no Templo, o mesmo da cirurgia, até o dia em que a morte lhe foi decretada, segundo escritos, cruelmente, libertando-o, ao subir para o céu.

Gosto desta analogia toda vez que lembro de minha irmã gêmea que caiu em cima do portão de ferro de nossa casa, cujas lanças pontiagudas perfuraram seu coração. Nenhum cirurgião pode salvá-la. Morreu com o coração rasgado, seu corpo muito branco respingado de sangue, coroado de lanças pontudas. A imagem perdura forte depois de 60 anos como sendo o Sagrado Coração de minha pequenina irmã, bela e branquela, Sahra.  

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BETTINA LENCI – Uma empresária que se realizou tendo como início profissional a história da arte e a fotografia, mas que, posteriormente, descobriu que lendo e escrevendo é possível criar um mundo com um olhar agudo sobre o cotidiano de todos nós.

Um comentário

  1. A personagem parte de uma tragédia pessoal para ressoar os ecos do coração. Gêmeos reais ou figurados, em suma trata-se de lidar com corações dilacerados, vazios, preenchidos, pelo amor, pela dor, pela saudade

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