Lá longe,
por Esther Soares

Depois que você viajou, decidi também me afastar um pouco da casa. Escalo a montanha íngreme, como as cabras montanhesas que vimos nas escarpas gregas. A cada passo, paro, respiro e me pergunto “por quê?”

Aqui no alto tento acomodar carnes e tristezas na dureza deste trono de pedra, só meu, trago minhas agulhas e agruras, as linhas e os pensamentos, as lembranças doces e as amarguras destes anos de um amor tão mal vivido. Tudo misturado, mais uma vez se propondo a uma definitiva tomada de decisão.

Vejo o mar lá longe, ele me saúda com o estrondo das ondas que se espatifam nos rochedos, único som suportável – e estimulante: muitas vezes os sons do tempo incomodam meus desejos de silêncio. Que cor tem o vento?

Que cor tem o som do vento? Roxo? Ele rastela as nuvens, o mar, o sol, mistura as tintas em tons de lilás. Lilás, a cor da saudade, das ausências, a cor do que vive na memória sem nunca ter sido.

Naquele dia em que você me olhou, lembra? – decidi que a gente ia ficar junto. Escolhi o meu sorvete de mel porque seu jeito doce de me olhar abriu um túnel dentro do meu peito, derreteu até minhas entranhas.  Agora vejo roxo, lilás, “a cor do que vive na memória sem nunca ter sido”…

O pio distante de uma ave corta minha necessidade de solidão. Solidão para pensar em você. Pensar em nós, me permitir a aceitação de sua partida mais uma vez inesperada e inexplicável, nunca a última, a angústia das expectativas, Penélope retomando agulhas, tecendo ausências. Até quando, até quando Penélope?

De novo o pio, agora sobre a minha cabeça. – É uma águia! Uma águia voejando em círculos, escolha feita, preparando o ataque? Onde a presa, a presa escolhida presa ao ninho à mercê da dominadora? A presa, eu, chocando ovos, tecendo fios de espera, sempre à mercê de cada partida sua?

A águia poderosa mais uma vez dispara seu grito, me acorda de fantasias, dá voltas no azul, me olha de soslaio, suponho, eu, presa também, sempre à espera de entregar meu fígado fatiado para sua festa de retorno.

Acompanho por horas o seu voo incansável, às vezes perco-a de vista, mas ela – ou será ele, macho dominador? – como você, ela sempre retorna, parece que berra quando me reconhece disponível, refestelada em meu trono de rainha desta pedreira imutável de que me apossei orgulhosamente há tantos anos.

Doce engano! Toneladas de rocha negra se propondo, prisão sem grades, cérebro, coração, emoções, tudo emaranhado por suas doces palavras de despedidas e cheganças.

Mais uma vez acompanho o voo da águia, acordo a poeta, volto a buscar a poderosa: não a vejo, saiu da minha tela. Banhou-se de sangue ou de sol maduro? Não sei.

Sei de mim, agora com certeza, me encontro com o que ainda sou de mim, jogo agulhas, memórias e dores morro abaixo. E começo a descida.

Cautelosa e determinada, começo a descida.

Anoitece. Chego à praia e retomo a caminhada. Sei para onde vou.

O vento escaneia o oco do meu cérebro, meu cérebro agora lavado, oco. Sou. Agora sei que sou. Caminho em direção ao mar. Tarde fria. A água gelada começa a lamber minhas pernas exaustas de sedentarismo inútil. É muito bom, isso…

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Os filhos da mãe galinha ciscam minhocas no jardim
Enquanto esperam o dia do corte
Os filhos da mãe águia deslizam oníricos no céu azul
E se embebedam de sol maduro

Esther Soares

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Meu pai era um emérito contador de causos, histórias vividas ou presenciadas por ele. Após a refeição, nos aprisionava à volta da mesa apenas com sua retórica mágica. Sempre foi o grande provedor de livros desde minha infância, um incentivador de cultura que nos abriu caminhos para o prazer da leitura.

E eu, muitas vezes ao sair dali, procurando copiar aquela tonalidade lúdica de um encantador de serpentes, como via nele, me propunha a recontar para meus amiguinhos histórias que me emocionavam, livros que lia, filmes a que assistia nas matinês infantis.

Mais tarde percebi que alguns racontos eram fragmentos de vida com todas as características de um conto.  E aproveitei-os, sem constrangimento pela “invasão de privacidade”, mas com a emoção da empatia, da paixão, sem nunca identificar protagonistas verdadeiros nas mágoas e frustrações de meus personagens.

Escrever é pintar com palavras: escrever é pintar, é fotografar, é captar momentos e concretizá-los em palavras e em textos. É criar imagens na percepção interna do leitor.  

Escrever nos faz melhores leitores. Criar personagens é penetrar o misterioso mundo do outro, do diferente, não só compreendê-lo, mas ser capaz de amá-lo. Com empatia. Escrever certamente nos leva a ampliar o conhecimento da psique humana.

Existe um artista em todas as pessoas sensíveis; nem todas produzem Arte, mas são também artistas porque capazes de se emocionar com a Arte que outros produzem ou praticam.

Livros publicados:

  • A Arte de Escrever Histórias, Editora Manole, 2010
  • Era uma vez um gato xadrez, Escrituras Editora, Literatura Infantil em 3ª edição
  • A Mesa, Arranjo e Etiqueta, Manole Editora,  9° edição 2010
  • Marketing Pessoal, sua Importância para o Desenvolvimento Profissional, in Manual do Secretariado Executivo, Editora D’Livros
  • Nós, o gato e outras histórias,  coautora, Contos, Miró Editorial, 2012
  • Inventário das sobras, Escrituras Editora, Contos, 2015
  • Está na mesa, CD, edição da autora 2014
  • Aconteceu no Vale do Paraiba, coautora, contos
  • Disco de cartolina, poemas, Editora Pólen, 2016
  • Cento e oitenta graus, org. coautora, Editora Pandorga


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