Olhar frontal,
por Bettina Lenci


 

 

Não fosse Jung, eu não teria chegado a Freud. O primeiro criou as condições para eu sobreviver, mas foi o segundo quem resolveu o problema: meus progenitores! Eles se desmaterializaram como pó de cremação jogado ao vento. Passava na frente de suas fotos que até há pouco tempo me causavam vaga insegurança e concreta orfandade; hoje passo, olho o mesmo porta – retrato e digo: são meus pais.  Não me lembro deles vivos a não ser através da força imagética da fotografia. Tampouco penso neles como mortos que deixam um vácuo vazio na gente. (uma redundância poética que quer dizer o que um dia foi Tudo, transformou-se em Nada.)

Nutro por eles um amor abstrato, sem forma. Uma lembrança esfumaçada, fantasmas que não interrompem meu sono.  Um amor delimitado ao tempo em que fui embrião nas decisões que tomavam por e para a minha vida. Olho e não me vejo mais em seus olhos, não os ouço falar, não tenho mais olfato para os cheiros de bolo, não me conforto com o sorriso na foto, há décadas no mesmo plano, as expressões paralisadas, os olhos inexpressivos, olhos de fotografia.  

Achava ter herdado as cadeiras largas do meu pai ou a esperteza da minha mãe. Não lamento ter sido filha de ambos e não sou infeliz por não ter percebido a minha infância como menina feliz.  

Com Jung, achei descobrir em mim as forças do Yang e Yin, minhas sombras e algumas luzes de saída, aceitei todos os meus defeitos e não acreditei em nenhuma das minhas qualidades. Fortaleci-me junto às heroínas e heróis mitológicos deduzindo, através deles, lições de vida para o meu cotidiano.  Orientei-me pelo I Ching e os astros no céu, mitos e crenças de aborígenes, pelo espírito místico e religioso da Cabala, pelo sentido da espiritualidade sem nunca indagar ou consultar meu acreditar se Deus existia ou não.

Como meus pais continuaram a interferir do além-túmulo, deixei Jung e os longos anos de análise cujo resultado foi valiosíssimo: Jung é capaz de dar um sentido à vida para quem não tem nenhum.

Precisei de Freud para, lentamente, sentir o desmoronar de uma boa história e, ao largar-me à própria sorte, alegre e agradecidamente, vi, sem medo, que se é Só desde ao nascer. Daí para frente, todas as peças de marfim do jogo de damas foram “comendo” as peças de âmbar negro do tabuleiro.  Dizer que não deu trabalho, mentiria! Dizer que foi um jogo e ganhou-se a partida, é ousado!

Submeti-me à sublime sensação ao descobrir que não mais era necessário recorrer ao passado para justificar um presente.

Este preâmbulo é uma crônica autobiográfica, nada poética para uma escritora que se deseja poeta. Quero escrever coisas da lembrança, dos sentidos vividos, dos imaginados, do fantástico inventado, portanto nada a ver com o preciso, o científico, lógico e racional. Mas precisei começar este romance do jeito que comecei: apresentando-me como uma pessoa igual a todo mundo. Uns concordarão sobre o que acho de Jung e Freud outros não. Aqui reverencio respeitosa e carinhosamente ambos, reconhecendo que é possível ser feliz e um tanto idiota, crente e… temente , por alguma razão que não sabemos  a não ser os filósofos e santos que criaram para si e o mundo crenças deste porquê sem forma, sem cor, sem nome, um nada além do SER.

Não sei se a história que vou contar é a minha. Ela é de uma pessoa que vive, vai morrer e que por acaso pode até ser eu mesma desejando estar presente na hora da minha morte.  Acredito que a minha vida se mistura a do meu personagem mesmo porque sou eu que devo dar vida a ele. Este personagem pensa, come e dorme por ter certeza, hoje, de que todos têm uma história para contar e que estas são, entre si, semelhantes, convicta de que todos os sete pecados capitais estão presentes e os dez mandamentos desrespeitados em cada um de nós, posso espelhar-me em mim mesma, mas contar uma história diferente da minha.

Um pouco, cada um poderá se identificar com o personagem ou confundir-se com o todo. Vamos ver daqui pra frente. Onde está você? Você personagem? Deixe-me vasculhar a vida, é lá que vou achá-lo. Você será um pouco idealizado, um pouco inventado, um pouco verdadeiro, um pouco mentiroso. Um pouco mau, um pouco bom.

Sendo este texto uma introdução lembrarei sempre de todos que me compuseram, técnicos, sábios, professores, escritores, ao longo da minha história, cada um interligado e especial em sua especificidade através da minha simples e factual Existência. A eles serei eternamente grata.

Aguardem!  

Poderá ser apenas uma promessa. Uma vontade a ser levada anos afora até concretizar-se.   

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BETTINA LENCI – Uma empresária que se realizou tendo como início profissional a história da arte e a fotografia, mas que, posteriormente, descobriu que lendo e escrevendo é possível criar um mundo com um olhar agudo sobre o cotidiano de todos nós.

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