Dente de leite,
por Bettina Lenci


 

 

Busco um arquivo nas várias gavetas entreabertas da minha caixa preta!

Ela não está conseguindo cuspir as imagens que procuro. Queria definir expressões faciais das pessoas que amei. As que expressavam brilho nos olhos, o sorriso no canto da boca ou a risada altissonante .

Sei apenas que os olhos do meu pai eram azuis. Os da minha mãe castanhos. Mas não registrei o que os olhos dos meus pais queriam dizer para mim.

Observava dentes. Se os dentes não estavam dentro daquela boca estariam em qual outra? Um dia , no dentista,  havia uma dentadura sobre a mesa , muito branca, ausente de vida. Serviria para qualquer boca!

Era engraçado separar os dentes do resto do rosto e colocá-los em boca alheia como as crianças que brincavam com uma caixa de chocolates estampada com diferentes caras e corpos, bastava puxar uma  lingueta e a tirolesa virava um homem de bigodes com saia. Aparecia uma peruca feminina no homem ou um cachimbo na boca de mulher para depois inverter os desenhos. Era mais divertido retirar das figuras sua identidade do que comer o chocolate. Os anos eram 50.

Ao ver, pela primeira vez, que na boca do pobre faltavam todos os dentes fiquei chocada. Foi o despertar para o fato de que havia pessoas que podiam cuidar dos seus dentes e outras não. Naquele momento ainda tinha todos os meus dentes de leite na boca.

 

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BETTINA LENCI – Uma empresária que se realizou tendo como início profissional a história da arte e a fotografia, mas que, posteriormente, descobriu que lendo e escrevendo é possível criar um mundo com um olhar agudo sobre o cotidiano de todos nós.

Um comentário

  1. Curioso, escrevi sobre dentes também. É um tema bem interessante: com eles mastigamos o que vem de fora, encantamos pelo sorriso ou rilhamos de raiva.
    Os de leite nos dão uma mostra do que poderemos fazer com eles no futuro.

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