Como nasce e morre uma vítima, por Liliana Wahba

Batizada Angelique, angelical e delicada como um lalique, diáfana, pequena e delicada, fez jus a seu nome. A quarta filha de cinco; quatro homens: três que a antecediam e um caçula. Após o parto foi banhada pelo choro da mãe: que lindo, exclamavam as enfermeiras, tanta emoção que nem precisou lavar o bebê. A mãe chorava porque nascera uma menina. A sentença gravada: será infeliz como todas da família. Cresceu ouvindo que seria miserável e as lágrimas maternas acompanhavam a profecia; era perseguida por elas, diariamente, “ ser mulher é uma sina, filha, coitada…, resigne-se pois não adianta lutar”.

O pai temido esbravejava e batia nos irmãos homens; para ela bastava um olhar de censura, não fale demais, não corra, não deixe a saia levantar. À noite deitava junto dela na cama, carícias longas, suaves: olha o umbiguinho, abre um pouco as perninhas. Com doze anos as carícias tornaram-se mais bruscas; algo estranho e incompreensível a abria. Com treze o pai se desinteressou, envolveu-se com uma amante jovem, mulata exuberante. Angelique se sentiu traída, mais do que aliviada, apesar de repudiar a transformação do pai. Descobriu depois que fora desvirginada.

Pouco interessada em namoros – o exemplo da brutalidade dos irmãos era suficiente para afastá-la de rapazes -, acabou cedendo à insistência de um deles, por acomodação, porque estava acostumada a obedecer e porque nada esperava do destino.

Oprimida por um marido tirânico e ciumento abafou qualquer lampejo de vivacidade e o lamento da mãe era seu fundo tonal. Desconhecia os encantos da sexualidade, cedia docilmente e o cérebro registrava obrigação ao invés de prazer. Após uns anos de esterilidade, engravidou. Lá pelo quinto mês o marido impacientou-se, de fato ela começara a chorar como a mãe. Mandou-a à casa do litoral; os caseiros que cuidassem dela, reclusa. Obedeceu, nada esperava, o ventre inchava, mas desconhecia expectativas ou amores pela criança por vir. Chegou o dia e as dores intensificaram.

A caseira, mulher de sabedoria ancestral, acompanhou o parto com cuidado e firmeza e uma criança menina veio ao mundo com um grito de triunfo. Pela primeira vez um olhar humanizou-se em ternura e mistério, linguagem incompreensível a fez estremecer, não mais pela dor, mas pelo sublime.

Envolveu em linho branco a filha recém-nascida e a levou para batizar à beira do mar invocando Iemanjá. Seguiu nas estradas com a garotinha vivaz e morena com cabelos de sol e apagou os vestígios de infelicidade.

 

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LILIANA LIVIANO WAHBA – Psicanalista junguiana. Profa Dra da PUC-SP. Diretora de Psicologia da Associação Ser em Cena – Teatro de Afásicos. Autora de Camille Claudel: Criação e Loucura.

 

 

Um comentário

  1. Glamurizar a pobreza, a miséria, o desamparo, a desgraça, travestidas em poesia, só pode dar no que deu: mais uma vítima sem a menor possibilidade de sobrevivência em um mundo que pode ser muito mau.

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