Era no início da década de 1940 um garoto ainda parco em letras quando ouvia os episódios da guerra que se desenrolava, contados por meu pai. Os japoneses são cruéis, explicava ele com os detalhes que lia nos jornais ou assistia nos cinemas. Não são gente como nós, mas animais selvagens; jogam criancinhas chinesas para o alto e as espetam com baionetas, queimam vivas mulheres e crianças, abrem a facadas as barrigas das grávidas e cortando os pescoços dos soldados inimigos capturados, não fazem prisioneiros de guerra e….
…E, quando minha avó me chamou ao alpendre da casa – que ficava bem em frente à cadeia pública – para ver aquele caminhão que chegava cheio de japoneses de todas idades, todos em pé, ensopados pela chuva forte que caíra um pouco antes, tive muito medo e alívio: aqueles amarelos malvados não conseguiriam fazer-nos mal. Os homens carregavam apenas grandes sacos, as mulheres, pequenos pacotes, e algumas, uma espécie de sacola nas costas nas quais eu via para fora apenas as cabeças e pés de criancinhas muito pequenas. Entraram na cadeia e foram trancafiados em celas que antes eram para os criminosos da redondeza, e de lá não os vi saírem. Quando adulto foi que eu soube haviam sido levados, algumas semanas após, a um campo de concentração.
Sendo assim malvados esses japoneses, era difícil entender como minha avó mandava pelas manhãs levarem várias broas de milho e café com leite à prisão. Mas havia mais a contar. Dizia ela que alguns deles trabalharam na fazenda dela, que eram muito trabalhadores, e produziam imensas frutas e legumes que ninguém estava habituado a ver em todo o vale do Paraíba do Sul, muito menos no Rio de Janeiro. Mas meus tios, que administravam a fazenda, queixavam-se que isso era também ruim, alegando que os japoneses estragavam a terra. Levei muitos anos para descobrir que esse estrago era um tanto diferente: os japoneses, produzindo muito mais do que os nativos – esses, “meeiros” da fazenda – não aceitavam devolver a metade ao proprietário da terra, mas a quantidade igual que os nativos conseguiam, embora – em contrapartida – oferecessem em benefício, qualidade incomparavelmente melhor.
Minha avó dizia ainda mais: japoneses não choram, e são tão desapegados que se matam enfiando uma grande faca rasgando os próprios ventres quando pegos fazendo coisas muito erradas, menos, naturalmente, as que faziam com as criancinhas chinesas.
Dos japoneses de minha infância guardo duas lembranças. Uma foi dona Suzuki, a idosa que, com um lenço branco cobrindo toda a cabeça e a nuca, puxava sozinha uma pequena carroça a vender verduras e frutas na vizinhança. Não falava uma palavra em nossa língua. Para mostrar quanto custava estendia um pedaço de papel com um número escrito, recebia o dinheiro, contava-o em silêncio, devolvia o troco e entregava a mercadoria embrulhando-a em papel de jornal. Para minha avó eram quase sempre aqueles enormes tomates gordos e bem vermelhos que eram palpados por ela com muito carinho e, colocados em um cesto de vime, consumidos por todos com muito gosto em dois ou três dias. Deduzo que vovó imaginava dona Suzuki na cadeia com os de sua tribo, e por isso mandava aquela comida, depois que a quitandeira desapareceu de nossa casa.
A outra parte da história japonesa deixou-me muito abalado quanto as convicções de minha avó que sempre nos dizia ser a mentira o pior pecado. No ano em que os japoneses ainda estavam presos, vi em certa ocasião sair da cadeia Vadoca – o notório papa-defuntos do lugar – levando sobre a cabeça um pequeno caixão – diziam de anjinho à época – acompanhado um passo atrás por um guarda da polícia, devidamente fardado, ao lado de uma velhinha japonesa (que não era dona Suzuki) e que estranhamente ia ela tocando espaçadamente, com uma ou outra mão trêmula, a borda do caixão a caminho do cemitério do alto do morro, bem acima da casa de meus avós. A velhinha japonesa caminhava a passos miúdos sobre tamancos altos de madeira que mal se equilibravam sobre as pedras do calçamento todo irregular. Sua roupa era cinza escura e chegava até os pés, um tanto apertada, o que lhe dificultava ainda mais o andar. Na tarde escaldante vi novamente Vadoca de volta do cemitério, agora com o caixão sob um braço, claro que vazio, e ainda o guarda fardado e a japonesa molhada de suor – o que me fez correr estarrecido a contar à minha avó – que a velhinha soluçava muito, mas sem murmurar palavras, e observei, chorava lágrimas iguais às nossas, como água, que escorriam profusamente de seu rosto amarelo, enrugado pela idade e pelo sol, e respingavam sobre os ombros. O corpinho fora jogado em uma cova comum, deduziu minha avó. Aos prisioneiros e à mãe do anjinho não devem ter permitido acompanhar o féretro por não haver guardas indispensáveis para levá-los e impedir alguma fuga.
– “Mas vovó”, perguntei eu, ”não dizia que japoneses são tão maus e insensíveis que nem choram”?
– “Bem, meu netinho, é que esses daqui já não são bem japoneses como aqueles do Japão; são mais como a gente”.
– Mas, respondi em minha ingênua indignação juvenil, “se são como a gente, por que estão presos no porão da cadeia”?
Vovó não respondeu dessa vez; compreendi assim, anos mais tarde, que ela entendia bem de tomates vermelhos e gordos, mas nada de política.
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EDER C. R. QUINTÃO – É graduado em Medicina pela Escola Paulista de Medicina desde 1959, doutor em Endocrinologia, comendador da Ordem do Mérito Científico pela Presidência da República do Brasil, livre-docente de clínica médica, professor, pesquisador, membro da Academia Brasileira de Ciências e avô orgulhoso de três netos. “São o mais importante feito do meu CV”, segundo ele. Escrever não entra no CV, é paixão.
Dr. Quintao,
Gostei muito mesmo. Tenho 72 anos e também, como seu menino do texto, gostaria de saber porque estavam presos os japoneses? Ouvia a mesma história contada pelos meus pais que, subitamente se
mostraram compadecidos por eles, quando jogaram a bomba em Hiroshima.
Até hoje carrego a dúvida. Gosto de tudo que é japonês incluso os próprios mas impregnou-se em mim
a visão da violência quando em guerra ao lado de quem nao deveriam ter participado. Uma contradição como tantas que vivemos hoje mas que sem duvida começam na infância.
Seu texto discorre fácil, sem lados. Uma narração muito bem construída de uma época brasileira. O pós guerra. Vejo seu menino de calças curtas e blusa branca olhando atentamente a História se desenrolar.
parabéns,
bettina