Azulecendo, por Hilda Lucas

Por que será que não param de me olhar com olhos de cabras estúpidas? E que olhos terei eu? De vaca? De santo efeminado? Sempre temi o espetáculo da morte. Ai, meu Deus, morrer na rua estirada no asfalto. O azul do céu é o mesmo desde sempre. Nada mudou, nada muda. O bando de meninos correndo na praia, apostando corrida contra o vento. O azul do céu espia minha morte como espiou minha vida.  Não há cortinas nem persianas a fechar. Escancarada morte no asfalto manchado de perplexidade e sangue. Calma a senhora vai ficar bem. A voz do estranho. Ele cheira mal. A sabiá com asa partida piava no terceiro degrau da escada. Calma você vai ficar boa. Eu juro. A bichinha pulsava débil na minha mão. Morrendo quietinha sem alarde. Sinto gosto de sangue e metal. A ambulância já vem. O apito do trem dentro da mata despertava a bicharada, rasgava o entardecer fazia revoar as maritacas e assanhava os macacos plantadores de cacau. A sirene da ambulância abre espaço no trânsito e na curiosidade do povo. Quem morreu quem vai morrer quem se matou? Abram a roda, a coitada precisa respirar. Um cordão de desconhecidos em volta da coitada inerte exposta. Meu limão, meu limoeiro. E a gente a girar nossos vestidos rodados na praça. Uma vez tindolelê, uma vez tindolalá. E a praça a girar em torno de nós e o tempo parava porque a lua nos invejava. As meninas na praça, o tempo suspenso, o amanhã nem precisava chegar. O tempo correndo, se esvaindo, areia solta ligeira. A senhora vai ficar bem. O tempo girando girando batendo nas colunas da memória mergulhando nas lembranças destampando baús desafogando mágoas trazendo à tona bobagens as imagens enganchando em saudades a saudade fazendo tudo parecer bom feliz próximo. Ontem não existe mais nem amanhã existirá. Amanhã você estará novinha em folha. Sarampo. As mãos da minha mãe na minha testa febril. Amanhã o novo não virá, não de novo, não amanhã. O céu não me abandona. Azul impávido indiferente. A gente vive dentro de uma bolha azul. Tente relaxar. O boleto do condomínio na bolsa. Cadê minha bolsa? O dentista a roupa no tintureiro o conserto da geladeira o cheque pré-datado o aniversário da neta. Um ano já? Quantos anos você está fazendo? Quatro e ganhei um cachorro. Filu. O latido, o pescoço rijo, o bafo, a respiração ofegante. Uma golfada o sufoco o quente do sangue escorrendo a blusa de seda azul inutilizada. A nódoa do caju o visgo da jaca o sangue na calcinha o sêmen no lençol o seio vazando leite o batom no colarinho o dendê na toalha a lágrima no lenço o mofo nas fotografias. As manchas todas da vida. A camisa empapada o joelho roto a inundação invisível do órgão rompido. Corpo triste desconjuntado. Os olhos intrusos dos pedestres. Os olhos de Deus atrás do azul. Pai, você vai me ver dançar quadrilha? Vou ser a noiva. O colar de pérolas o vestido branco as juras as promessas eu te amo para sempre até que a morte nos separe. Tem um padre aqui. Ave, Maria, que medo da hóstia explodir na minha boca. Confessar? Não, eu quero só dar a mão a alguém. Venha, suba, me dê a mão. E a copa da mangueira virou casa. Se eu ouço o senhor ? Talvez. Ouço muitas vozes todas as vozes minhas vozes todas. Mãe, promete que não vai morrer? Como a notícia encontrará minha filha? A senhora é parente da dona fulana? A dona fulana sofreu um acidente. Fatal. O que é um acidente fatal? A raia jamanta enganchou no anzol e derrubou seu tio do rochedo. Fatal é mortal. Tadinha da minha menina. Vai ficar sem saber o que fazer com a menina dela. Órfã e mãe. Vai chorar abraçada à filha e prometer que nunca vai morrer. Mães não morrem, filhinha.  O sangue secando na seda. A boca muda. Os olhos virados para dentro, tudo vendo. Não sinto as pernas os braços. Não sinto medo. Voo como nos sonhos. Sempre voei. Voava tanto nos sonhos que tinha certeza que voava de verdade. Tirava rasante das ondas, furava as nuvens, tocava os sinos das igrejas, colhia ninhos nos galhos das eritrinas gigantescas. Voo sobre os ônibus enfileirados no caos da avenida, sobre os tetos dos edifícios, das antenas de televisão. Voava sorrindo. Voo atônita. O azul não é um lugar, nem azul é.
__________________________________________________________________________________________________

HILDA LUCAS – “Nasci Maria Hilda Kruschewsky Lucas, em Ilhéus, Bahia, em 1954. Tempo, espaço e genética. Essa é minha espinha dorsal, o resto são minhas circunstâncias. Advogada, mãe, escritora. Mudei muitas vezes, sou muitos lugares, sou muitas. A escrita é a casa dentro de mim.”
__________________________________________________________________________________________________

 

9 comentários

  1. Azulecendo . Lindo titulo. Texto denso . . Acho que v.” pegou” todos os pensamentos possíveis de todos aqueles que morrem na avenida!
    Deve azulecer mesmo antes da gente morrer. Caso nao, meu palpite seria o branco.
    Como v. escreve bem!

  2. Hilda, mais uma vez vc me emocionou com seus contos. Que beleza, leve, profundo e maravilhoso. Cada vez melhor. Obrigada por nos presentear com suas obras.
    Bjo grande

  3. Doce Hildinha, tão bom ler você! Tem alma de borboleta e visão de águia. É elegante, imponente e faz da humildade sua irmã na conjugação de suas belíssimas rimas. Com os seus pensamentos a nos convidar, pude voar vôos rasos e também vertiginosos. Pude visualizar cada cena, ouvir as crianças cantarem porque eu era uma delas. A minha criança ria e sentia a profundeza de suas palavras. Aqui estou, num silêncio quase sagrado, a imaginar que o céu não é azul. Grande abraço!

  4. Hilda!
    Que texto forte e lindo!Punjante!Na veia!
    Vivi uma situação limite – fui picada por mais de mil abelhas ?, na Praia do Forte Bahia.
    Fui levada p o Hospital Aliança – já com 2 Polaramines engolidos a força, nauseada, e já mto inchada no rosto, pescoço,cabeça.Elas, as abelhas focaram nos meus cabelos.Chegando na emergência, ouvindo os médicos incrédulos na minha recuperação…. e eu fui olhando p mim, sai do meu corpo.
    Era dia do Senhor do Bonfim- e eu pedi a Ele mais um tempinho, p criar meus filhos…E tudo era azul clarinho…Um túnel a minha frente me aguardava entrar… e eu implorei ao Senhor do Bonfim que me poupasse desta vez!Nao sentia nada do meu corpo… ouvia minha sobrinha chorar muito e pedir p eu não morrer…Depois da minha prece, senti meus pés, depois as pernas, e a vida foi subindo, subindo até eu conseguir falar!Hei! Estou viva!Viva! A enfermeira que me cuidava. O médico bonitão estavam de boca aberta quando abri os olhos!Mais um milagre, e aqui estou eu contando esta história.A vida é a Azul!

  5. Uma autora com voz grandiosa. Narrativa curta que agarra o leitor por horas e horas. Coisa fina. Não são muitos os escritores que alcançam tal domínio das palavras.

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *