A 50 metros da minha casa de menina, um mundo subterrâneo se abriu. Aguçada pelas bruxarias contidas nas histórias infantis, a turma da rua se lançou buraco adentro com o sério propósito de desvendar os segredos do fundo da terra. Era uma serra pelada vertiginosa e profunda. Nossa primeira incursão trouxe à luz uma ratazana morta que apresentada à minha mãe, na cozinha de casa, suspensa pelo rabo, provocou um abalo sísmico imediato. Claro que a criançada da rua toda foi proibida pelos pais de penetrar nas escavações, porém nossa astúcia superou o mando. Sem violar o estabelecido, nos organizamos de maneira a preservar nossas investigações nos mantendo nas bordas, estudando do alto aquele labirinto a céu aberto. Por debaixo da argila vermelha e densa, sobre a qual nos deitávamos de bruços, mantendo a cabeça pendurada sobre a vala, os olhos arregalados e a boca semiaberta, incontida pelo espanto, um universo novo se revelava a cada amanhecer.
As minhocas ou cobras-cegas, figura mítica que nos assombrava, com o tempo se tornaram nossas protegidas, tamanha a quantidade que vertia da terra cortada pela máquina – aquela boca enorme devorando tudo o que via, sem remorsos. Levava coisa viva, arrancava raízes, cortava o subsolo como se só a vida que se vê fosse levada em conta. Para nós, ao contrário, aqueles escombros compunham um conjunto de fragmentos preciosos, ali caçávamos nossas esmeraldas, perseguíamos nossos monstros, coração na boca a cada achado.
As obras duraram meses, tempo suficiente para um ciclo completo: do primeiro susto ao último sobressalto. Vigiamos cada etapa, salvamos o que pudemos. Guardamos as pedrinhas brilhantes, lavadas e acondicionadas em vidros de conserva, sobre a mesinha de cabeceira. Salvamos todas as minhocas que alcançamos, transportando-as em caixas de papelão para nossos jardins.
Nos retiramos do nosso campo, agora já em vias de ser concretado, certos que ali jaziam segredos só nossos, para sempre sepultados sob o asfalto.
Hoje, quando passo por lá, dirigindo meu carro, me dá um calafrio, e a sensação de esmagar algum ser vivo.
VERA TARANTINO – “Sou uma pessoa em movimento. A escrita me acalma, me faz parar. Minha relação com a palavra sempre foi da precisão dos dicionários, no entanto foi da imprecisão das minhas memórias que meu texto nasceu.”
Delicia de texto na memória de criança: lembro que todas as minhocas iam para um vidro de geleia com tampa enferrujada e sufocadas em poucas horas. Se penso hoje, acho mesmo que crianças são malvadas e as lembranças são o importante para se guardar em vidros de pureza cristalina. bj
que delícia! arranquei três pedaços aqui do texto, com meu olhar/bocarra [que devora o que vê!]:
1- nossa astúcia superou o mando.
2- Levava coisa viva, arrancava raízes, …
3- trouxe à luz uma ratazana morta que apresentada à minha mãe, na cozinha de casa, suspensa pelo rabo, provocou um abalo sísmico imediato.
essa última poderia ser de Lispector!
Crianças são seres sensíveis, delicados, podem ser cruéis, inventivos, imaginativos. Correm perigo de vida o tempo todo. E um milagre estarmos aqui, fifties+ !