Estilhaços, por Regina Amaral

Afinal chegara o grande dia. Há dois meses a família se preparava para ele. Eram ainda sete horas da manhã, mas o caminhão já se encontrava encostado no grande portão da casa, por onde sairiam os moradores e os móveis, para não mais voltar. Corriam todos, cada qual tratando de empacotar os bens mais pessoais. Tropeçavam entre grandes caixas, tapetes enrolados, revistas e jornais rasgados, rolos e rolos de papel bolha. As crianças aproveitavam aquela confusão para correrem pelos cômodos, já meio vazios, vingando-se da regra que os impedia de fazê-lo em dias normais. Até Miro, o labrador, se aproveitando da agitação que ocupava toda a casa, rolava seus ossos brancos e roídos pelo assoalho. Parecia querer lembrar aos donos que eles não poderiam ser esquecidos. As escadas se revelavam pequenas para o trânsito de homens vestidos de laranja que por elas subiam de mãos vazias e desciam suando com o peso de grandes volumes.

No meio de portas escancaradas e das grandes janelas abertas, já despidas das antigas e pesadas cortinas, somente uma porta mantinha-se fechada. Era a sala onde resolveram colocar os grandes espelhos que até  uma semana atrás enfeitavam e ampliavam os espaços da casa. Era necessário preservá-los.

O ambiente se encontrava na penumbra, nele a única janela fechada da casa. Envolto em espelhos de tamanhos variados, ganhava o aspecto lúgubre de um infinito vazio que se desdobrava.

No meio da manhã, a porta da sala dos espelhos se abriu e alguém entrou empurrando uma cadeira de rodas. Era a empregada da casa que considerou ali, o melhor lugar para a idosa senhora tirar seu cochilo matinal. Acomodou-a bem no centro, uma vez que as paredes estavam todas tomadas.  Isto feito, saiu encostando a porta sem fazer barulho. O turbilhão a engoliu e ela entrou novamente na engrenagem da mudança.

Passado um tempo, talvez devido ao barulho externo, talvez ao fim natural do sono, a velha senhora acordou. Tateou com seus olhos a escuridão. Abria-os e fechava-os, lutando para compreender onde se encontrava. Não estava assustada. Sustos só acometem aqueles que temem que algo lhes ocorra, ou àqueles a quem ama. Há tempos ela cultivava em seu peito a indiferença de quem já partiu do mundo, de si. No chão, em torno dela, os fios da manta de lã e as pontas de laços desfeitos.

Foi recolhendo os sons que lhe chegavam da casa. Devagar, lembrou-se que hoje era o dia da mudança, da partida definitiva daquela casa onde ela havia crescido, se casado, vivido sua história. Pensando nisto, retirou, não sem dificuldade, seus pés do apoio da cadeira e os fez deslizar pelo chão de madeira larga. Que intimidade, seus pés e as tábuas enceradas. Os primeiros passos, as corridas da infância, a dança alegre e despreocupada da  adolescência, a caminhada em direção ao homem amado, as passadas cuidadosas e protetoras na maternidade,o andar firme da vida adulta, os tropeços da velhice. Com esforço, recolocou-os novamente no apoio da cadeira. Olhou suas mãos, magras e manchadas e pensou que talvez não fossem suas. Sentia isto há um tempo. Pura estranheza em ver-se encaixada naquele corpo rígido e ressequido, sem autonomia e, por isto, quase sem dignidade. Da memória, não recebia grande ajuda. Faltava quando mais precisava, embaralhava fatos e datas, e o que era pior, nomes. Ela apagava o mundo e o mundo a apagava. Não havia mais olhos a refleti-la e quando isto acontecia, a imagem era sempre misturada a uma cadeira, perna de sofá, a um canto da sala. Sabia estar fadada a ser fundo, figura nunca mais. Agora era sombra dilatada que acompanhava o desaparecimento da luz. Amontoado de fronteiras borradas, transformando ela e sua história em um mundo de fantasmagoria, sobre o qual ninguém tem certeza se uma vez existiu.

Lembrou-se do tempo em que sua imagem preenchia cada canto daquele grande e pomposo espelho, emoldurado de dourado. Tempo sempre acompanhado pelo som de seu nome, ecoando nos corredores, nas salas, nos quartos da grande mansão. Agora o silêncio, nem o eco restou.

Enquanto os vivos, lá fora, corriam e ajeitavam suas últimas bagagens, selecionando tudo o que vibrava e fazia palpitar seus corações, a velha senhora desfazia-se de sua última valise.

Arrancando seu olhar que varria o passado, levantou os olhos e se viu em meio àquele vazio infinito, replicado em cada canto da sala. Procurou-se atentamente em cada espelho. Acionou o motor da cadeira de rodas em direção ao central, de molduras douradas. Olhou dentro dele procurando ver seu reflexo. Mas nada, não via nada, somente o infinito replicado infinitas vezes.

Ainda de frente para o espelho, em voz baixa, declarou o fim do compromisso consigo mesma. Despiu-se dos últimos vestígios de si. Gargalhou livre, soltando as últimas amarras que a mantinham cativa de sua imagem.

Acionou o motor da cadeira para a parede oposta àquela a que se encontrava. Com determinação, acionou-o novamente em direção ao grande espelho e entregou-se ao infinito.

O barulho gelou os que estavam fora. Correram todos, preocupados com a integridade dos espelhos.  O que se viu, ninguém entendeu. O grande espelho quebrado em inúmeros pedaços, refletindo em cada um deles, partes da velha senhora. Lado direito da cabeça, o canto da boca, os cabelos, dedos, joelho.

A cadeira diante da moldura vazada, vazia.

 

“Entre o visto e a escrita, descanso na pausa. É nela que as palavras surgem e me espantam, enquanto contam, para mim, o que vi. Não à toa me tornei psicanalista.”

4 comentários

  1. Rê, querida,
    Mais vezes eu leio, mais eu gosto desta sua escrita pausada que vai nos enredando a cada parágrafo, desaguando neste final tão libertador.

  2. tenho 71 anos e acabo de ler na vejinha sobre velhos e suas defesas para fugir da solidão. Li nesta tarde úmida e chuvosa de domingo embaixo das cobertas.
    No fifities, disse para mim, será a ultima leitura sobre- mais de 50 anos. – do dia.
    E eis que me deparo com seu texto. Me “pegou” pela transparência da realidade. Imagino sua descrição ainda nao vivida mas já imaginada: capacidade unica de uma escritora. O texto finaliza poeticamente e salva a gente dos espelhos estilhaçados que nos acompanham a vida toda. Morrer entre seus espelhos deve ser um bom fim! Parabéns. Muito lindo!

  3. Vera, Betina, obrigada pela leitura carinhosa. Caminhos novos, a gente tateia, oscila, e são os retornos amigos que vão ajudando a corrigir e reconhecer melhores rotas.

  4. Lembrei da velha da Clarice Lispector, que fazia 90 anos, em Feliz Aniversário. Cada uma ao seu modo deixa uma marca nos acontecimentos que as atropela. Saem deles maiores do que entraram.

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