Rendição, por Bettina Lenci

Meu avô, velho coronel, oriundo da pequena aristocracia baiana, ficava sentado em frente à uma mesa de jacarandá, à luz de uma ampla janela iluminando, por horas seguidas, um álbum de fotografias. O álbum era tão antigo quanto os  101 anos que ele viveu. Senil, folheava, página por página, voltando sempre à primeira. Ali sentado, passou a ser para todos, como o relógio de coluna no canto da sala, os ponteiros juntos, parados no algarismo doze.

A casa onde morava era de uma fazenda que perdera sua majestade. Os móveis, os tecidos, vasos e bibelôs datavam do século XIX. Só a velha escrava alforriada ainda cozinhava a galinha de angola que passeou pelo terreiro de cacau à cata de escorpiões.

As longas folhas das samambaias dependuradas no amplo terraço de azulejos importados da França contavam uma história, enquanto o galinheiro, sem mais galinhas, o curral sem mais o gado, a horta sem mais hortaliças, contavam outra.

Esta lembrança me causa desconforto.

Quando chegou a minha vez de folhear o álbum, entendi ter diante de mim não mais fotos históricas. Dei-me conta que era o Tempo invencível prensado entre as páginas , atemporal.

O Tempo não pertenceu ao meu avô, não pertence a mim e a ninguém. Ele pertence ao ar, ao vento, oceanos e florestas. É matemática sem erro.

Como protagonista da nossa Existência, somos prisioneiros rendidos ao Tempo.

** este texto foi  inspirado no livro de Zygmunt Bauman, “Vida Liquida”.

 

Bettina Lenci é empresária e apaixonada pela escrita.

5 comentários

  1. Beleza!

    Em seu tubo de ensaio, Bettina isola o Tempo – enquanto na publicação logo anterior, Loeb isolava o amor!

    Às vezes acho que os textos dialogam por aqui!

    Ps- Bettina, como vc [que um dia me confessou isso], eu adoro as crônicas sobre memórias…

  2. O tempo prensado, soberano, nos assiste. E nós, quando muito, nos perpetuamos em estáticas fotografias e na memória indiferente dos retratos nas paredes. Gostei muito da sua crônica. Trago também dentro de mim, fazendas, varandas, álbuns, avós e a mesma rendição.

  3. Lindo texto, Bettina. O tempo, esse ser inexorável que nos acompanha, invisível nos começos da vida, tão presente agora que nos aproximamos cada vez mais da terra.
    Resta a memória, encarnação do tempo, que permite que ele volte para trás em imagens às vezes vívidas, outras mais apagadas.

  4. Texto bom pra matutar!
    Por que sei que na definição de Campo em Física há uma particularidade: somente colocando um “corpo de prova” em sua área de ação é que conseguimos detectar que o Campo existe.
    Pois é, Bettina, interessante pensar que os “objetos”, que você relembra e nos faz relembrar tão nitidamente com seu talento descritivo (animados ou inanimados), sejam os “corpos de prova” de um Campo chamado Tempo. E que estamos continuamente testemunhando a existência dele com nossa própria existência.

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *