O que é o amor? Um sopro, um pássaro que pousa, uma asa que adeja, uma brisa que desmancha o cabelo, arrepia a pele, morde o coração, pinta o mundo de ouro, invade o pensamento, película de luz, um banho de espuma, uma rajada de vento, uma de metralhadora, um feixe de prata, um raio, um trovão, um abrigo em noite de frio, um abrigo em noite de desamparo, um abrigo em noite de solidão, uma voz que acalma, que agita, que arrepia, uma voz que excita, um afago, um hálito morno, uma pele, uma textura, um olhar, um sopro manso, um sopro macio, um sopro, um turbilhão, uma doçura de mel, um estremecimento…
Todos, quase todos, fomos banhados em mel. Desde sempre, desde que o mundo é mundo, desde que o homem e a mulher foram criados, e seus filhos, e irmãos e primos, e tios, e cunhados e amigos e sogros e humanos, todos, e também os animais. A mulher fica mais bonita, o homem, mais viril, a criança, mais sorridente, a sogra dorme melhor, a cunhada, mais generosa, o primo, mais divertido, o amigo, menos folgado, a vizinha diz bom dia, o motorista não atropela cachorro, a empregada não envenena a patroa, a patroa, mais agradecida, o padre, menos azedo, o hálito, mais perfumado pelo beijo do amante, o pelo do cachorro, mais sedoso, o gato, menos egoísta, o passarinho, menos agitado, o rato, menos nojento, a barata, mais brilhante, a pulga, mais gorda, o bolo, mais crescido, o pão, mais perfumado.
Todos, quase todos fomos banhados em mel, uma amorosidade que vem e que vai, que vem e que vai, pra onde, quando vai embora? Vai pra onde, quando ficamos vazios do sopro, da luz, da voz, do hálito, da pele, do olhar, pra onde?
Fica flutuando à deriva, quando abandona o corpo que habitava? Fica no ar, no cosmos, no universo, vibrando até ser captado por outro corpo? Há que se ter um dispositivo coletor de energia amorosa, igual ao que abriga a energia elétrica? Será que existem partículas de amor, assim como as de luz, que levam 8 minutos e 20 segundos para percorrer a trajetória do Sol até a Terra?
A pele, que recebe o sol, serve de captador para o amor? E o sorriso, o olhar, o cabelo, o cheiro do corpo, o calor que se espalha, o desejo que emana da alma, são receptáculos do amor?
Há tanto amor sobrando, tanto amor que abandonou um corpo, vários corpos, então tem amor de sobra no universo. Deveria ser fácil, só querer, só estender o braço e pegar uma estrela, uma fruta, uma goiaba, uma maçã, uma bola, um pente.
Mas o amor foge, se retrai, se encolhe e se expande, obedece a leis só suas, que nós humanos, com toda nossa sapiência, não conseguimos desvendar.
Então é ficar ao sol, ou à sombra, ou na sala de jantar, na casa de amigos, na estrada, na lavanderia, na rua, na fila, na loja, no cinema, na galeria de arte, ou no banco do jardim lendo um livro, na rua com o cachorro, na feira, que, de repente, o amor encarna em você.
É quando levanta os olhos e vê o mundo pintado de ouro.
Hora de alegria, só alegria, sem passado nem futuro, só presente, do presente que ganhou: o amor que reencarnou em você.
Sylvia Loeb é psicanalista e escritora. Visite seu site em sylvialoeb.wordpress.com , acesse sua página no Facebook: SylviaLoeb_escritora ou escreva para o email [email protected]
Sylvia,
A ideia de ter o mundo pintado de ouro novamente é deliciosa e não seria ouro de tolo, mas ouro dos apaixonados. O título me chamou atenção. Publiquei num site feminino da Abril em 2008 um texto : “Quando acaba o amor” e anos mais tarde numa revista outro ensaio chamado, -“We-cloud” sobre essa questão tão insistente: para onde vai tudo que deixamos de sentir? Gostei muito dos enamoramentos e dos sintomas que você elenca. Agora, é só esperar as lentes douradas! Que venham!
Isso mesmo, Hilda, questão insistente, essa, a de onde vai parar o amor quando ele vai embora.
Ouro dos apaixonados, é desse que estamos falando, concordo com você.
beijo,
Sylvia
O ouro, o olhar dourado é uma espécie de miragem-sintoma do apaixonamento. Tipo “… É melhor ser alegre que ser triste…/ Mas para ter um samba com beleza é preciso um bocado de tristeza… Mas, quando o amor o amor acaba, do que mais sentimos falta é de quem somos quando estamos apaixonados.
Tem razão, somos seres diferentes quando estamos apaixonados, outras qualidades de ser.
Que texto bonito Sylvia!
Fiquei um tempão no primeiro parágrafo, depois no segundo, terceiro e nos demais.
Para mim o amor acaba acompanhado da decepção que descarto. Entäo vou para o labirinto secreto que construí na minha cabeça, achar o armário de ébano em que guardo junto com tantos outros que nem da pra contar, esse amor que não acaba, só descansa e espera minha visita. De vez em quando esbarro em alguma coisa, que pode ser uma música, o gesto de um estranho, sei lá, qualquer coisa que me entrega o mapa secreto do labirinto e a chave do armário e vou sentir o prazer de revê-lo.
Valeu a viagem.
Leo!
Que texto maravilhoso o seu!
Seus amores não acabam, pois você ultrapassou a decepção, guardou o que houve de mais belo e tocante no armário secreto de ébano, que de vez em quando visita!
Belo lugar para guardar recordações tão preciosas.
Loeb!
Se vc patentear o coletor de energia amorosa, ficaremos milionários [de amor!].
“Há que se ter um dispositivo coletor de energia amorosa, igual ao que abriga a energia elétrica?”.
Que metáfora!
E essa abaixo, Loeb e Hilda, é pra vcs! [e tbem para Vinicius de Moraes!]. Olhem só a fala do personagem de Marcelo Coelho, na peça Berenice Morre, de 2016:
“A saudade da minha querida que partiu não é saudade dela. É saudade de mim… Saudades daquele EU que ela me fazia ser…”.
🙂
À Sylvia e às desventuras do amor
O amor está na pele,
incrustado entre as dobras da cicatriz.
O amor está na aorta, poema de sangue,
irrigando o corpo de força motriz.
O amor, transitório, perdura
com cheiro de sexo no nariz.
O amor não jaz, mas ferve o cérebro,
e o faz um tanto mais feliz.
O amor, volátil e disforme,
não escapa de dentro, emana,
e de coração a coração,
vai-se construindo nesse desvão.