À meia luz, por Regina Amaral

É, a vida não é fácil para os tímidos. Há o sol, as lâmpadas fosforescentes, a lua cheia. Os gestos distraídos que contam, à revelia de quem os faz, porções de histórias secretas. As palavras indomadas que escapam da boca que se quer fechada. Os olhos dos outros. O resultado deste excesso de luminosidade é o rubor a  escancarar que alguém foi flagrado. Flagrado sendo quem se é.

Estes pensamentos me levam à presença de Bia. Talvez fosse mais correto dizer à sua ausência.  Menina, doze anos, lacônica, de rosto branco e imóvel, quase máscara. Não gostava dos dias, preferia as noites escuras de lua nova, fugia das praias, só usava roupas pretas. Educada, respondia a tudo o que lhe era perguntado, com um sim ou um não. Caso houvesse um talvez, ignorava, evitando qualquer possibilidade de prolongar a conversa. Inteligência tinha de sobra. Tímida? Certamente. Tudo o que não queria era se expor.

Muitas vezes, olhando para ela, me indagava sobre o que a empurrava na direção da solidão. Aos poucos, fui compreendendo que ela conheceu tesouras prematuramente, que a cortaram aqui e ali, renegando de maneira explícita as linhas que a compunham.

Logo descobri que tudo o que Bia queria era um fundo de gaveta, um caderno com cadeado, uma porta com chave, um telefone sem extensão, uma mãe às vezes surda, às vezes cega.

Entendi que ela havia feito de seu peito o esconderijo perfeito. Um esconderijo feito de carne, carne que estremecia quando alguém se aproximava. Ali se enrolava feito caracol, não para dar o bote em algum desavisado, mas para se esquivar de um.

Com o tempo seu esconderijo tornou-se prisão. Escondia-se tanto do mundo que, com frequência, perdia-se de si mesma. Calada, mantinha abafados seus desejos, a tal ponto que nem ela mesma podia ouvi-los. Não arejava seus pensamentos em trocas com outras pessoas. De lá nada saía, lá nada entrava. Aos poucos o ar viciado do caracol protetor foi matando Bia. Talvez por isto fosse tão branca, talvez por isto fosse tão quieta, sem brilho algum.

Gostava dela e torcia por ela. Aprendi, com o tempo, que o que nos unia eram nossos silêncios. Ficar a salvo das palavras era fundamental para ela. Parece que assim, nesta terra de nada e ninguém, as tesouras desapareciam e ela permitia certa aproximação que aquecia a nós duas.

Aos poucos, muito devagar e cuidadosamente, Bia abriu uma brecha em sua fortaleza,  por onde me convidou a entrar, permitindo que eu conhecesse suas fantasias.  Escrevia belissimamente e eu, através das palavras inesperadas, mas operantes, pude entrar em seu canto secreto onde já ensaiava desfazer o caracol. Escrevia contos em que não havia príncipes nem princesas. Contos pesados, feitos de cenas de sangue, duelos com armas pontiagudas, crimes chocantes. Leitora, eu não buscava compreender ou traduzir. Lia e tecia comentários estéticos, deixando Bia a salvo em seu esconderijo. Era fundamental que ela sentisse que podia expor-se sem ser criticada, avaliada, traduzida. Era preciso recebê-la à meia luz.

Vi Bia crescer e se tornar uma mulher. Ainda de preto, ainda andando pelas sombras, muitas vezes bebendo para que o mundo a esquecesse. Ainda vivendo boa parte do tempo enfiada em si mesma. Fez faculdade de história, casou com um inglês e mudou-se para Londres, deixando para trás, de um só golpe, as praias ensolaradas e muitos pares de olhos familiares e inquisidores. Refugiou-se em lugar de língua estrangeira, onde as palavras de sua língua mãe agora não mais a expunham, ao contrario, ofereciam abrigo,  garantindo impenetrabilidade. A condição de estrangeira permitia a ela certo distanciamento das pessoas e do mundo. Ser estranha não causava mais espanto, era parte integrante de ser alguém que vinha de longe. Afinal, o longe ninguém sabe direito como é.

A última vez em que encontrei Bia dei a ela um presente. Uma caixa, refinada o suficiente para ser um presente. Mas ela sabia que o que estava sendo oferecido era um lugar simbólico para que ela guardasse de maneira confiada o que não queria exposto, derramado no mundo. Era um aval meu a ela, para que seu esconderijo fosse mantido e respeitado, reunindo ali a porta com chave, o fundo de gaveta, o silêncio, desobrigando seu peito de se manter prisão.



“Entre o visto e a escrita, descanso na pausa. É nela que as palavras surgem e me espantam, enquanto contam, para mim, o que vi. Não à toa me tornei psicanalista.”

 

 

 

4 comentários

  1. À Bia, com agradecimentos pelo mote:

    O meu corpo é vitrine.
    Para cá do vidro, o infinito.
    Para lá do vidro, outro infinito.
    Denso estou cá, desconhecido.
    Além há névoa, impenetrável.
    O que de mim se espraia para além de mim?
    Meu corpo, embotado,
    estranha estar no mundo
    e dele sente apego.
    Talvez, o mundo estranhe
    eu estar no mundo,
    e em mim sinto suas raízes:
    Eu corpo mundo é tudo.

  2. Que lindo texto! O direito de se resguardar respeitado. E desse respeito, surge a possibilidade de se olhar.
    Obrigada Regina. Bia

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