Pão preto - Paulo Akira Nakazato - fifties mais

Pão preto

07 de março – segunda-feira (hora de membranas).

Acordei cedo – 5h50min. Um fio de vento úmido se enroscou no pescoço. O medo, um réptil frio debaixo do edredom, despertou comigo. Puxei um pouco mais a ponta da coberta até o queixo. A luz  baça, enviesada nas venezianas de madeira, mesmo fraca, atravessou minhas pálpebras. “Sou um homem de forças escondidas” – ressonhei, pensativo, revirando-me para ficar de lado. Ainda pesquei as últimas sílabas da frase que esquecia, puxei-as uma a uma a fim de decorá-las. “Sou um homem de forças escondidas” – repeti.  Abri os  olhos. Por uma fração de segundo, o quarto em penumbras me acenou um dia ensolarado. Um bem-te-vi reforçava essa impressão gritando bem perto. Ajeitei-me sem energia para levantar. Hesitei: minhas costas doíam e aquele som estridente piorava-as. Respirei fundo o ar gelado infiltrando nas frestas da janela. Estiquei as pernas e era como se um animal se destacasse de mim, nadasse pela lateral da cama e mergulhasse no lençol que parecia encharcado. Rapidamente contraí o corpo e dobrei os joelhos, recolhendo em mim a vontade de viver.

07 de março – segunda-feira (hora do bicho da seda).

Acordei de novo – 6h32min. O frio ainda era sensível, mas a temperatura havia aumentado. Já não sentia o espetar do ar que soprava das venezianas. Uma de minhas pernas estava descoberta. Puxei com o pé, mas o edredom não esticou. Virei-me e vi que minha mulher, de costas, se encolhia, segurando firme a ponta enrolada do acolchoado junto ao queixo, protegendo-se do frio. Toquei seu ombro, ela se movimentou, soltou a manta e eu ganhei mais espaço na cama, desdobrando o joelho. Ela resmungou, virou-se para mim. Sua cara ficou a alguns centímetros do meu rosto. O cabelo em leque sobre o travesseiro acomodava a cabeça pequena. A testa brilhante não tinha uma marca sequer. Os cílios escuros pareciam dois traços simétricos ao lado do nariz. A respiração era silenciosa, só notada pelas narinas pulsantes. Duas rugas em cada canto dos olhos e uma linha nas pontas da boca denunciavam sua idade.  Bonita, continuava bonita. Rolou sobre si mesma e ficou de barriga para cima. Um dos seios extravasou o baby-doll e mostrou o mamilo escuro com auréola rosada. Lembrei-me da primeira vez que os vi. A ansiedade e o medo de tocá-los quando ela enfim se despiu e ofereceu-me depois de tanta espera. O beijo miúdo, quase insensível, a boca titubeante, as circunvoluções da língua na pele sedosa, o tremor de seu corpo abraçado ao meu. Fiquei desconcertado, meio triste pelo tempo que passara. Agitei-me e deitei-me de costas. Ela gemeu e ficou de lado, com um dos braços sobre o meu quadril. Moveu-se um pouco e pôs a mão no meu pau. Segurou-o por cima do pijama. Olhei-a tentando descobrir alguma consciência, mas ela continuava dormindo. Aguardei algum sinal de meu corpo como se ele fosse anexo a mim. O quarto agora aquecia. Apanhei a bainha do acolchoado e com um puxão descobri-me por completo, arrastando junto o braço dela que me envolvia. Calcei os chinelos e fui ao banheiro, ela acomodou-se de bruços.

07 de março – segunda-feira (hora das aranhas).

Eram 7h18min quando silenciosamente apanhei as malas que tinha posto no fundo do guarda-roupa. Levei-as para fora do quarto e deixei-as à beira da escada. Voltei ao banheiro, recolhi meus apetrechos, coloquei-os em um estojo que depois enfiei na mochila com as pastas de trabalho. Olhei-a na cama: ela dormia com o rosto apaziguado pelos travesseiros. A luz solar invadia parte do cômodo e iluminava sua silhueta, acentuando o contorno da perna esquerda que fugia do aconchego da coberta e se exibia com toda a bela nudez.  Saí do quarto e desci as malas até a porta da sala.  Fui à cozinha e pus a cafeteira no fogo. Na porta da geladeira, preso por um ímã, o antigo retrato de Gina, aos quatro anos, balançou quando peguei a manteiga e o leite. Olhei-o enquanto segurava o pote de mel na prateleira acima da pia e pareceu-me que ainda vivia. Duas laranjas adormeciam entre as maçãs antes de eu cortá-las e espremê-las em um copo decorado de passarinhos. O amanhecer refletia na casca das peras. Dividi uma ao meio e comi metade. Descasquei uma banana e a engoli. A cafeteira borbulhou. Desliguei o fogo. Abri o armário e trouxe à bancada o embrulho com o pão preto que ela gostava tanto. Destaquei uma fatia, espalhei manteiga, um fio de mel  e a depositei em um pratinho. Arrumei-o ao lado do copo de suco, a xícara ainda vazia sobre um pires com um saquinho de adoçante e a caixa de leite frio.  Enchi de café a metade de um copo. Fiquei bebericando e ciscando um pote de sequilhos enquanto esperava sentado ao balcão.

07 de março – segunda-feira (hora dos pássaros)

8h03min, pouco tempo para ela aparecer. Escutei-a descer as escadas e percebi que havia visto as malas perto da saída. O tempo que demorou a chegar à cozinha era revelador. Apareceu coberta por um quimono de seda por cima do baby-doll e o fechava até o último botão; murmurou um bom-dia, olhou a porta da geladeira, depois veio suavemente e sentou-se na banqueta alta de madeira. Viu o pedaço de pão enfeitado. Levantou os olhos e me encarou. Levantei o copo aos lábios e retribui. Ela engoliu um pouco de suco, eu enchi sua xícara de café. Com dois dedos, ela suspendeu a fatia e, ligeira, amparou-a com os outros por baixo. Abocanhou a parte mais crocante. Nesse movimento, um visco de mel escorreu pelo indicador e se esparramou na palma da mão. Depositou a fatia no pratinho e começou a lamber-se. Em nenhum momento daquele malabarismo, ela me olhou. Limpou do polegar ao mindinho com sua língua. Apanhou o guardanapo e enxugou-se. Se me desse um único sorriso por causa daquela lambuzeira, talvez tivéssemos escapado. Sabia que me perguntaria o que sempre perguntou ao ver minha bagagem à porta de sala. “Quando você volta?”. Fiquei em silêncio. “Vai demorar? Pra que tanta mala?”. Continuei bebericando o café e olhei-a até com certa ternura. Qualquer resposta seria a resposta. Pouco importava. “Você me disse que não aguenta mais essas viagens. Não consegue dizer não?”. Seu jeito de balançar a cabeça e olhar por cima de meu ombro, fixando um ponto no vazio, indiferente ao que eu falasse, me chateava. Tomei o último gole do café. Apanhei o copo e pus na cuba da pia. Lavei as mãos lentamente e percebi que ela me olhava, talvez aguardando as respostas. Sequei-as na toalha. Contornei o balcão e fui à porta de saída. Ela permaneceu alguns segundos antes de me acompanhar. Desenrosquei a pequena chave da argola do chaveiro e destranquei a porta. Ela parou no meio da ampla janela que dava vista à garagem. Eu puxei as malas e levantei-as. “Deixo a chave” – eu disse. “Como você vai entrar?”. “Não vou precisar. Não volto mais, Cloé.” E saí.

Paulo Akira Nakazato, 55 anos, físico. Adora palavras e às vezes organiza algumas em contos e crônicas, esperando que façam sentido. Mas o que o atrai, mesmo, é quando elas orbitam no poema e se arranjam em sistemas estelares próprios.

 

 

 

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