A morte da letra - SERGIO ZLOTNIC e ANNA JUNI – fifties mais

A Morte da Letra

QUATRO CONTOS CURTOS…

1- A MORTE DA LETRA –

Houve o enterro de uma letra morta, que desejou ser cremada, mas não foi ouvida!

O cortejo atravessou o morro ao som de um pistão-lamento. Cidadãos apareceram e, elegantes, tiraram os chapéus, em respeito à falecida, que era de família católica, embora laica.

Ela, a letra morta, já havia dito tudo que podia, já tinha cumprido todas as promessas de significar e, no entanto, ainda não havia esgotado inteiramente as possibilidades… Jazia, exausta e imóvel, num caixão cor de vinho. Descansou!, diziam uns.

O séquito caminhou lento, enquanto o povo fez um minuto de silêncio: diante do fim, calar.

Um sábio explicou a um grupo de crianças, tristonhas e inconformadas, que a letra, ao ser enterrada, se transforma em matéria orgânica e dá origem às árvores, que dão origem aos livros, que criam novas letras. Uma letra morta é como uma semente, a renovação da vida, afirmou.

Não há mais carne nesta letra, constatou-se.

Carpideiras, especialmente importadas, chegaram, vindas da Península Ibérica, bigodudas. Choraram e soluçaram, copiosas, aos quatro cântaros, como sempre.

Por sobre tudo, um chorão, bem plantado e robusto, de raízes volumosas, derramou-se em lágrimas também, fazendo eco às carpideiras, enquanto o pistão arranhou chorinhos… E até mesmo fados.

Seguiu-se ao enterro da letra a tradicional chuva de “É”.

2 – A CHUVA DE “É” DO MOMENTO

A letra “E” e seu acento” ́”, ambos combinados, mas um pouco independentes, chovem, numa revoada. Precipitação!

Os “És” caem alegres, cada um deles brincando com seu acento, que os cutuca na barriguinha, fazendo-os rir muito, cócegas aéreas. Gasosas, que delícia!

É o “É” do momento, reconhece o povo.

Alguns acentos, caídos do céu, cravam-se como punhal, liquidando seus companheiros, que logo “desmorrem”, molequinhos que são.

Outros, trepados em suas bases, competem em esgrima fina.

Alguns “Es”, tendo perdido seus acentos na queda, os procuram aflitos, pois, sem eles, acabam incluindo involuntariamente vários objetos e coisas, condenados a uma eterna adição, como imãs pequeninos. O “E”, sem seu acento, é muito aderente. Seu acento o salva do grude, interditando-o, obrigando-o a separar-se de tudo e a afirmar alguma coisa.

Guarda-chuvas são abertos, pelos quais escorrem muitos “És”, respingando de caspa os cidadãos.

3- TEORIA DE LETRA

Numa nuvem de pensamento abstrato, do alto do púlpito, o professor de letras, explica meteorologias:

A morte da letra provoca chuva de “és”. Os dois fenômenos, como gêmeos xifópagos, são ligados. É batata!

O povo compreende tudo o que ele diz.

A morte da letra ativa uma grande quantidade de “É”, liberando totalmente o presente.

Ao contrário, plena de memória, a letra viva extingue o “É” do momento, pois em geral carrega muito mais “Eras” e “Fois”. E um ou outro “Será” – que, por ser futuro, é sempre teórico…

É raro, mas uma vez ou outra, a letra viva toca, de leve, um “É”. Caso da poesia! Matéria dada, matéria de prova.

4- ARQUIVO MORTO

Equivalente ao fenômeno da chuva de é do momento – sequência natural do enterro da letra -, de outro lado, mas em bem menor escala, há o enterro de um arquivo morto.

Trata-se de um funeral em que também se revela mais liberdade em relação ao passado e às tradições. De um povo, de um cidadão. De uma pátria. Dum território. Duma língua. De uma época.

Três alternativas neste caso específico de enterro:

1- desprendimento.

2- doação de agasalhos.

3- limpeza de guarda-roupas.

Moral: deixe passar o que passou…

Dedicado a Phedra D. Córdoba e Naum Alvez de Souza 

 

sergio zlotnicSERGIO ZLOTNIC – Psicanalista, é Pós Doutor em Psicanálise pelo Instituto de Psicologia da USP. Pesquisador dos diálogos de Freud com os campos da arte. Colunista do Portal da SP Escola de Teatro. Pela Editora Hedra, lançou o livro de ficção Baleiazzzul, alusão ao atravessamento do processo psicanalítico. [email protected]

 

foto_anna juniANNA JUNI nasceu na cidade de São Paulo em 1989. Graduou-se em Arquitetura e Urbanismo na FAU Mackenzie em 2013 com o trabalho “Informateca do Gasômetro”, indicado ao 25º Ópera Prima e vencedor do Concurso Nacional de Monografias.

Atualmente é sócia do escritório de arquitetura Vão, junto com os arquitetos Enk te Winkel e Gustavo Delonero. Entre os reconhecimentos que o escritório tem obtido, destacam-se o 2º lugar no “Concurso Nacional Anexo BNDES” no Rio de Janeiro, em 2014, e o 1º lugar no “Concurso Internacional Geometrías Invisibles” na Cidade de México, em 2015, organizado por LIGA, espacio para arquitectura.

Entre outros projetos, o Vão dialoga com as artes plásticas, através de colaborações regulares com artistas contemporâneos.

2 comentários

  1. este texto excepcional , descrevendo o que a nós pertence – o Brasil – É ( uso- o com a segurança de não estar defendendo nada) o que de mais preciso explica o nosso momento.
    Deixemos passar o que está se passando e vamos usar mais o E
    se for para dizer alguma coisa que sirva para o nosso futuro. Parabéns!

  2. Belo texto, Sergio. Revelou, então, que você é quem escondeu aqueles ‘E’ desaparecidos de Perec, e nesse momento chove e embebeda estupefatos leitores. Texto excelente e embriagador que verte entrelinhas. Parabéns.

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