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Siamesas

Caminhar no quadrilátero dos jardins é uma aventura de cross country tanto são os obstáculos a serem vencidos entre buracos e raízes de árvores expostas.

Enquanto tomo muito cuidado para não cair nas armadilhas, imagino como será a minha velhice andando por aí.

Senhoras de idade dependuram-se no braço das empregadas que diligentemente não as deixam tropeçar. É dedutível tratar-se de uma empregada que conhece a patroa de longa data e a ela devotou muitos anos de sua vida. Ambas formam um só volume, dependem uma da outra em medidas desiguais. Há um deslocamento lento e silencioso entre elas e uma condição de dependência neste caminhar. A da patroa é maior do que da acompanhante. Neste encontro há uma coroa de submissão ao tempo e, no espaço agarrado dos braços, uma tensão paciente aos perigos da calçada que se abrem a cada passada trôpega.

É possível distinguir uma empregada com muitos anos de serviço, de outra recentemente contratada para o mesmo trabalho. Essa tem um ar assalariado, perto do indiferente. A empregada de longa data se assemelha à sua patroa nas roupas herdadas, o que a torna quase igual a uma amiga do mesmo círculo social.

Não são poucas as patroas e empregadas siamesas – de tão diferentes necessidades – que vejo neste quadrilátero paulistano.

Fico imaginando o transcorrer do dia no apartamento!

Dentro de casa, as dependências, apesar de mútuas, voltam a ser desiguais. Uma na cozinha, outra na sala. Uma dorme na sua cama de viúva e a outra onde sempre dormiu: no quarto da empregada.

Na rua, univitelinas, à noite, a separação diferenciada.

Entristece-me, não a condição do envelhecimento, entristece-me a desigualdade das alegrias e recompensas envelhecendo juntas.

A medida do tempo é a mesma, mas a semelhança que as une, não!

 

Bettina Lenci
BETTINA LENCI – Nasci em 1945. 45 foi o número título do meu livro lançado em 2006. Nas vozes de 4 mulheres, intimamente ligadas à minha visão de mundo, o livro narra a trajetória de uma imigração. Como filha de imigrantes, judia e alemã, não tenho como fugir da minha formação e cultura, base dos meus pensamentos. Realizei-me tendo como início profissional a história da arte e a fotografia. As moiras, contudo, teceram meu destino para que me especializasse em ser empresária. Porém, sou uma empresária que descobriu que lendo e escrevendo é possível criar um mundo individualizado. Um mundo com um olhar agudo sobre o cotidiano de todos nós. 

Os textos do blog www.legadovivo.com nascem depois de 60 anos de peregrinação em busca de marcos significativos à beira da estrada. Os caminhos indicavam trilhas a seguir, mas, como se crianças levadas tivessem virado as setas para o lado contrário, bati em terras movediças. Consegui desvirar a seta ao descobrir-me pronta para que os textos fossem  rejeitados publicamente.

2 comentários

  1. O olhar que vê com o intuição e a mente. Maneira mais profunda de enxergar e discernir os meandros das diferenças. Belo texto, Bettina. Parabéns.

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