Clube dos Escritores 50+ João Luiz Guimarães

História infantil para adultos, por João Luiz Guimarães

Era uma vez, numa televisão muito distante…

(Locutor)

— Boa noite. Começa agora o “Jardim Nacional”.

(música de abertura)

(Locutor)

— Termina mal romance entre Louva-a-Deus e planta carnívora que abalou o jardim ao longo da semana.

(Locutor)

–Após longa luta contra o preconceito sofrido por suas posições agnósticas, principalmente entre setores religiosos mais fundamentalistas de sua espécie, o Louva-a-Deus sofria grande resistência conservadora pela opção de largar a batina. Além disso, Mantis, como era conhecido, tornou-se professor universitário e escreveu um livro denunciando os bastidores de sua congregação. A provocação foi considerada inaceitável.

(Analista convidado)

É verdade. Mantis causou alvoroço na área acadêmica, ao defender a tese controversa de que “anatomia não é destino”. Entre outras coisas, Mantis afirmava que muitos Louva-Deuses em posição de comando dentro da congregação seriam contumazes ateus em pele de crente, abusando da fé alheia e visando a benefícios financeiros e até mesmo sexuais.

Mas o ápice da campanha difamatória que sofreu nas redes sociais se deu no final do ano passado, quando veio a público seu envolvimento afetivo com Dionéia–ou Dioneia, segundo o Novo Acordo Ortográfico –, uma planta carnívora muito conhecida da cena underground.

A discriminação não se devia tanto ao fato de Mantis ter feito sexo com um ser de outra espécie, o que é considerado bestialismo, uma prática culturalmente aceita em certos círculos. O escândalo foi ter se relacionado com um ser vivo de outro reino, o que, na falta de uma classificação melhor, é denominado “bestialismo de segundo grau”.

(Locutor)

Apenas para efeito de esclarecimento, quantos tipos de bestialismo existem?

(Analista convidado)

O bestialismo de primeiro grau é restrito ao reino animal. O de segundo grau, como no caso citado, à mistura deste com o reino vegetal. E há quem aponte a possibilidade — ainda teórica — de um terceiro grau, envolvendo o reino mineral.

(Locutor)

Por que “ainda teórica”?

(Analista convidado)

O problema aqui, segundo os pesquisadores, é a medição do processo, que costuma envolver períodos muito extensos de tempo. Tempo geológico. Como exemplo, há estudos avançados sobre uma suposta paixão, que teria chegado às vias de fato, entre um veio de rocha basáltica e os restos fósseis de um elasmossauro. Mas a coisa toda é delicada. Além de não haver certeza de que tenha sido uma relação consensual por parte do fóssil, o primeiro beijo roubado pelo basalto teve de ser datado com carbono 14 e parece ter atravessado cinco glaciações.

(Locutor)

Impressionante.

(Analista convidado)

Mas, voltando ao caso de Mantis e Dioneia. Me parece que aqui, mais do que o choque moral da união de seres de reinos diferentes, o maior tabu foi quebrado de fato quando Dioneia declarou abandonar sua dieta insetívera habitual e passar a adotar uma alimentação vegetariana.


Dioneia, vulgarmente conhecida por seu nome artístico Vênus Papa-Moscas, era vocalista de uma banda de rock alternativo e grande devoradora de moscas roadies e fãs formigas em geral. Como se dizia vulgarmente entre outros membros da banda, “Didi passava o rodo geral”.


O problema é que, sob o ponto de vista dos juristas de sua espécie, a decisão de se tornar vegetariana para não colocar em risco seu amor por Mantis significava abraçar o canibalismo. Prática cultural que se mostrou muito mais abominável para seus pares do que o mero bestialismo de segundo grau.


Condenada por incitação à prática plantofágica, ela foi colhida do jardim e exilada em uma floricultura na Sibéria, sendo separada de seu amor para sempre.


Inconsolável, Mantis decepou suas patinhas dianteiras para que nunca mais assumissem uma posição suplicante.

(Locutor)

Este é, sem dúvida, um final infeliz para aquele que já estava sendo considerado um verdadeiro conto de fadas contemporâneo.

(Analista convidado)

Mas o mais incrível, se o tempo do programa ainda permitir, é o último trabalho científico publicado na edição atual da revista Nature.


O conceituadíssimo periódico arrisca a ousada hipótese da existência de um bestialismo de “quarto grau”!

(Locutor)

E o que seria isso?

(Analista convidado)

Ainda faltam comprovações empíricas para embasar esta tese, mas o fato é que um grupo de cientistas aponta a descoberta de um flerte ocorrido entre uma estrela-do-mar e uma estrela da galáxia vizinha de Andrômeda. Problema: a luz do astro leva mais de dois milhões de anos-luz para atingir a estrela-do-mar. Ou seja, as medições de tempo envolvidas neste caso são descomunais. E o mais intrigante é a possibilidade de o astro nem existir mais. Alguns inferem que pode se tratar de uma atração não só envolvendo um animal e um mineral, mas sim entre um ser e um não-ser. Um amor entre um ente e uma fantasmagoria. Assunto não só para cientistas, mas também para filósofos. E talvez poetas.

(Locutor)

Infelizmente o programa de hoje termina por aqui. Agradeço a participação de nosso analista convidado e peço para os telespectadores continuarem conosco.  A seguir, mais uma edição do programa “Cassino em Foco”.


Hoje com o emocionante depoimento de Doda, um dado viciado em seis e sua longa batalha pessoal contra a dependência física e psíquica com o numeral.


Não percam.


Boa noite.

(créditos sobem na tela)

João Luiz Guimarães, roteirista, jornalista, escritor

João Luiz Guimarães é roteirista, jornalista e escritor

2 comentários

  1. Kafka adoraria esta…. Completo com o que dizia o etílico Lima Barreto: “não é de alcoolismo que sofre a literatura brasileira, mas de mediocridade”

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