poente - Paulo Akira Nakazato Clube dos escritores maiores de 50 - fifties mais

Poente

– Chá?

– Prefiro um copo de água.

Desliguei o fogo na chaleira que apitava e verti a água fervida dentro da caneca com o saquinho. Fui até o armário, peguei o copo e recolhi água fresca do filtro. Ao me aproximar da cadeira, ele levou com o indicador uma mecha do cabelo escuro para trás da orelha; depois cruzou as pernas por baixo da mesa e uniu as mãos sobre o tampo de vidro.

– É aniversário? – sentei e coloquei o copo à sua frente.

– De um colega de classe – bebericou feito passarinho.

– Onde vai ser a festa?

– Na Paulista – novamente com o indicador, tirou a franja dos olhos.

– Você e o Lucas começaram juntos na faculdade?

– Na mesma sala, lado a lado – sorriu meio envergonhado.

– Que especialidade vai fazer?

– Decidimos pela hemato.

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Enquanto eu ainda assimilava aquela flexão do verbo, ele virou a cabeça para a porta, revelando o perfil de traços contínuos e elegantes:

– Janis Joplin?

– Como?

– É Janis Joplin – indicou a música que vinha da sala.

– Conhece?

– Adoro “Summertime”.

– Fico surpreso que goste da Janis. Tão antigo. Ganhei de minha mulher quando tinha dezoito anos.

– O Lucas admira muito vocês.

Meu filho apareceu pronto e o chamou. Com a caneca nas mãos e as pernas lentas, seguimos até a saída, ele na frente e meu filho a um passo a trás. Antes de irem, me cumprimentou. Desceram as escadas, tranquei a porta, fui ao terraço e acompanhei com o olhar.

Atrás dos morros distantes, raios arroxeados de luz solar atravessavam o acúmulo de nuvens. O céu perto do horizonte era azul intenso, mas claríssimo. As silhuetas das árvores nos taludes tinham manchas verdes escuras. Tudo me parecia de uma melancolia profunda e anunciava a chuva quente do início de verão. Olhei para baixo e vi os dois atravessando a avenida larga. Uma rajada de ar balançou o extenso toldo sobre minha cabeça e fez redemoinhos no asfalto. No meio caminho entre as duas calçadas, Lucas – meu único filho homem – deu um pequeno passo na direção dele. Quase me asfixiei com a vontade de deter o espaço-tempo daquele gesto. No mesmo momento em que meu filho ergueu o braço e o acolheu num aperto aconchegante, protegendo-o do vento, uma lágrima pingou no chá. Vi os dois aninhados desaparecerem na curva da esquina. Olhei de novo o sol se pondo e soltei todo o ar que travava a garganta. As nuvens se esgarçavam rápidas. Levei a caneca aos lábios e fiquei um bom tempo parado ali, calmamente bebendo e observando cada uma das estrelas que vinha iluminar o lusco-fusco que se extinguia.

Paulo Akira Nakazato, 55 anos, físico. Adora palavras e às vezes organiza algumas em contos e crônicas, esperando que façam sentido. Mas o que o atrai, mesmo, é quando elas orbitam no poema e se arranjam em sistemas estelares próprios.

2 comentários

  1. Paulo, o seu conto é muito tocante. Muito mais pelo o que o narrador não diz, pelo que deixa nas entrelinhas, sugerido. A sensibilidade ao tratar tema tão delicado, espelhado nas nuvens que se esgarçam, no sol que se põe, na lágrima que caiu no chá, lembra uma gravura japonesa.

  2. Olha, Paulo, felizmente entrei neste espaço e encontrei essa preciosidade de escrito seu.
    Li, reli, sabe assim, feito a gente faz quando se depara com um poema? Nem sei o que dizer, a não ser que QUERO MAIS!
    Obrigada, Paulo. Que prazer de ler eu tive!
    Regina Gulla (facebook)
    Gato de Máscara Estação Poesia (facebook)
    e-mail: [email protected]

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