Sylvia Loeb #boas leituras

Sátántangó e Caderno proibido,
duas boas leituras por Sylvia Loeb

Acabei de ler Sátántangó, do escritor húngaro László Krasznahorkai (Gyula, Hungria, 1954), e saí impressionada. O livro é denso, desafiador, mas profundamente revelador sobre a condição humana. Ele se passa numa aldeia rural em decadência, um lugar onde a esperança parece só existir para ser destruída. Tudo gira em torno de Irimiás, uma figura misteriosa que retorna prometendo mudanças, mas que acaba apenas aprofundando a desgraça dos moradores.

Do ponto de vista freudiano, o livro é um retrato poderoso daquilo que Freud chamaria de retorno do recalcado e da repetição compulsiva. Irimiás representa esse fantasma que volta para reativar traumas e desejos não resolvidos, mantendo os personagens presos num ciclo vicioso, onde o sofrimento é repetido, mesmo que ninguém queira. É como se a aldeia estivesse presa numa neurose coletiva, incapaz de romper com seus próprios fantasmas.

Além disso, há essa dinâmica de um “supereu” perverso, uma voz autoritária interna que não alivia, mas acusa e manipula. Irimiás encarna essa figura que promete salvação, mas só traz punição, reforçando a culpa e a submissão.

Sobre o autor, Krasznahorkai nasceu e cresceu na Hungria comunista, num mundo marcado pela censura e pela repressão, que certamente moldou sua visão do poder e da fragilidade humana. A vida sob um regime autoritário é sentida em cada página, onde o controle, a vigilância e a falta de saída são quase palpáveis.

Sátántangó não é um livro para ler rápido ou com pressa. É um convite a olhar para dentro do abismo, para as forças invisíveis que nos prendem, entre o desejo de mudar e o medo que nos paralisa. Um livro para sentir e pensar, que nos deixa inquietos — no melhor sentido possível.

Ler Sátántangó é se permitir olhar para esse abismo — para tudo que a gente carrega e às vezes não sabe como lidar. É um livro que nos deixa inquietos, desejosos de entender o mundo e a nós mesmos.

Por que ler um livro deste, podem me perguntar. Porque é vencedor do Internacional Man Booker Prize, porque me interessam os húngaros, tais quais meu pai. Porque me interessa tudo o que vem da Europa, porque ganhei de uma amiga querida, porque a capa é assustadora, porque o título é um mistério.

( acabei de descobrir: Tango Satânico)

Enfim, a escolha de um livro pode ser por inúmeros motivos, afetivos, políticos, desafiadores, confortantes, o que quer que seja. Não importa. Para mim um livro é sempre um objeto de desejo.

Saí desta leitura com a convicção que Laszló Krasznahorkai é um autor cuja obra é de uma espantosa atualidade, um romance implacável e sombrio, que apesar do

Pai nosso…bem, Pai nosso,

que estás no céu, coisa,

no paraíso, glória,

ao Nosso Senhor Jesus Cristo.

não…santificado seja o Teu nome,

e seja…ou melhor,

que tudo seja como for melhor

para Você…no céu, e

também na Terra, em todo lugar onde

alcançais…enquanto na Terra

na Terra…no paraíso…

ou no inferno, amém.

nos deixou uma obra de testemunho, filosófica e profundamente humana.


E caso você não se anime com o brilhante livro de Laszló Krasznahorkai, tem outro que gostei demais: o Caderno Proibido, de Alba de Céspedes, escritora italiana, nascida em Roma, em 1911, falecida em Paris, em 1977, com uma vasta obra traduzida para vários idiomas.

A história passa-se em Roma, em 1950. Valéria é uma mulher que chamaríamos de normal, casada com um homem de quem gostava, mãe de dois filhos. Levava uma vida pacata entre a casa, a família e um trabalho de escritório. Não tinha angústias nem aflições. A única estranheza é que, em um belo domingo pela manhã saiu para comprar flores e notou um caderno que também desejou comprar. Era proibido vender qualquer coisa aos domingos a não ser flores, mas tanto insistiu que o vendedor cedeu, e ela então escondeu o caderno no peito como se fosse algo proibido. E aí começa uma história de autoconhecimento, de subjetivação, de abrir os olhos para fora de um mundo limitado e principalmente mergulhar na vida miúda em que crescera e da qual não tinha noção. A escrita tornou-se uma necessidade que se impunha e Valéria deixava de dormir para escrever. Pois a casa era pequena e a família estranharia demais. Afinal, o que uma mulher simples como ela teria para escrever? E Valéria cresceu. E enquanto crescia seu mundo se desfazia e refazia. Inúmeras vezes culpou o caderno pelas transformações que ocorriam. A autora nos seduz. O que relata é o crescimento de uma mulher em um amplo arco de mudanças em todos os níveis, familiar, amoroso, subjetivo, social.  A escrita é um instrumento poderoso de apropriação da vida.

Sátántangó, por Lászlo Krasznahorkai. Gyula, Hungria, 1954, Companhia das Letras

Caderno Proibido de Alba de Céspedes, Companhia das Letras

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