“Sempre tendera a encarar as coisas despreocupadamente, a acreditar no pior somente
quando acontecia, a não se inquietar com o dia seguinte…”
Franz Kafka
Recatado como um monge, magro feito um faquir, levava sua rotina inalterável de idoso: acordava às seis e trinta sem despertador, arrumava a cama, tomava a ducha, fazia café, comia uma torrada, lavava a louça, limpava os respingos de água da pia, dava comida aos peixes e saía para o trabalho.
Sentava-se à sua mesa pontualmente e abria os processos: roubos, latrocínios, homicídios, sequestros… E catalogava para investigação ou arquivamento, se não houvesse provas. Olhava com atenção as fotos da perícia, verificava com luvas objetos juntados, como mechas de cabelos, peças de roupas, facas, armas de fogo, batons, carteiras, isqueiros, restos de chocolate, unhas postiças, preservativos… Organizava em pacotes com etiquetas e lacrava em caixas com fita adesiva.
Não almoçava nas espeluncas próximas à delegacia: trazia sempre consigo um sanduíche de queijo que comia com café, e seguia pela tarde catalogando, adesivando, encaixotando e lacrando.
Voltava pelo mesmo caminho da vinda, sempre a pé, mas pela outra calçada. Dava ao mendigo da esquina o resto do sanduiche do almoço, e aos pombos, as migalhas de bolos que recolhia da copa.
Certa tarde não encontrou o mendigo. Ficou parado uns momentos na esquina. Deu aos pombos os restos de bolo. Apertou um pouco o saquinho com o sanduíche. Tentava seguir, mas não conseguia. Olhou ao redor. Tudo estava em seu lugar: os carros paravam no semáforo, depois arrancavam estridentes; os pombos bicavam o bolo com seu ar estúpido de sempre; a loja de ferragens continuava com a placa ‘vende-se’; pessoas cruzavam a rua, passavam rentes a ele na calçava. Virou-se e voltou para a delegacia.
As luzes já estavam acesas. Subiu até a copa, abriu uma embalagem de bolo remexido. Pegou as migalhas, desceu e começou o caminho de volta novamente. Perto da esquina estancou o passo. Fechou os olhos. Respirou. Retomou a marcha até a morada do mendigo. Não estava. Meio desnorteado, com o sanduíche na mão, deu as migalhas aos pombos. Pensou em colocar o sanduíche no chão. O trânsito amainava. O dono da loja de ferragens puxou a porta de correr. Tentou dar uma palavra, perguntar sobre o mendigo. Voltou para à delegacia.
Teve que se identificar ao policial da noite. Subiu até a copa. A embalagem do bolo estava no lixo. Remexeu e recuperou poucas migalhas. Havia perdido o saquinho. Colocou-as no bolso do paletó cinza. Na mão esquerda estava o sanduíche.
Retomou o caminho de volta. A noite já era alta. Bares se abriam: um movimento que ele não conhecia. Chegou à esquina. Ninguém.
Pensou em dar o sanduíche a qualquer um; seguindo para casa poderia encontrar uma criança, um bêbado, outro mendigo. Voltou para a delegacia.
O policial estranhou e chamou pelo rádio. O chefe liberou a entrada. Subiu até a copa. Vasculhou o lixo, sujou as mãos em restos de mostarda, recuperou mais migalhas. Colocou no bolso. Tomou um copo de água e voltou pelo mesmo caminho, relutante.
Recostou-se na esquina do mendigo. Ficou um tempo em pé. Depois sentou. Os pombos o rodeavam. Lembrou-se das migalhas sujas no bolso. Esticou as pernas, exausto.
De manhã, encolhido na calçada, foi acordado pelo barulho da porta da loja de ferragens. O dono deu a ele um copo de café. Tomou com o resto do sanduíche de queijo, amassado, que guardara no bolso esquerdo do paletó cinza.

Kafkiano!
Eder, sempre me aflige a ideia de que as pessoas ‘de rua’ não estejam ali somente pela miséria. Teriam alguns escolhido, ou sido sugados por um nada existencial tão profundo que os retira da ‘civilização’?
Obrigada pelo comentário.
abçs
Muito bom, Zulmara. Adorei seu conto, ele nos toma de preocupação, nos aflige, nos acomete de um temor.
Pois é Linda. A vida é tão imprevisível….
Quanta sensibilidade corre em suas veias, Zulmara querida. Obrigada por nos manter sempre acordados para esse mundo tão injusto. Me sinto tão impotente. Beijo
Excelente texto Zul, como sempre nos mostrando os diversos lados da vida, das nossas escolhas, muitas vezes.
A vida pode ser surpreendente, né Rira?
Oi Lilian. Vamos vendo a vida e escrevendo escrevendo escrevendo. As vezes dói. Beijão
Parabéns Zuzu, ótima amiga e escritora.
Seus contos da vida real.
Bjus
Oi Lucy. Gostei de você dizer: “seus contos da vida real”. É isso mesmo. Escrever a vida como ela é, não é fácil, não. Dói. Mas a gente tem que aguentar.
Obrigada pelo comentário. bj
Lindo conto de movimento, vai e volta até terminar como tudo termina: uma escolha de como se quer viver.
Ser mendigo, de verdade, e nao um pobre que nao tem onde morar e comer. Mendigo da vida ver e passar !
Voce, escritora!
Obrigada