Clube dos Escritores 50+ Histórias de Natal Imagem gerada por IA

#históriasdeNatal

Resolvemos fazer um compilado das histórias de Natal que publicamos aqui no Clube ao longo dos anos, venha ler…e deixar a alma aquietar

Blog Clube dos Escritores 50+ Paulo Akira Presença

Presença,
por Paulo Akira Nakazato

Agora eu queria ter um menino
que me mostrasse os caminhos
de todas as verdades das flores,
e me descerrasse à vista as fartas cores
que há tempos eu venho ocultando
embaixo da máscara gasta e escura.

Agora eu queria ter um menino
que me pusesse na alma um destino
de só a ele servir, sem trégua ou descanso,
como monumento ao qual eu adorasse
vinte e quatro horas do dia, mas no final,
no corpo, nenhum sinal de cansaço.

Agora eu queria ter um menino
que me acordasse de súbito feito um sino
tocando ao amanhecer quente de verão
e me pedisse que lhe desse o pão
e o fruto que eu, por descuido e medo,
havia negado a mim mesmo quando pequeno.

Agora eu queria ter um menino
que corre, pula, grita, faz caretas e mimos,
mas que tem também momentos
em que olha melancolicamente o poente
e o retorno de bandos de pássaros
ao espírito que teima em só pousar.

Agora eu queria ter um menino
que, indiferente ao que penso e sinto,
faz de sua vontade um brinquedo –
delicado mecanismo sem pensamentos
com catracas, polias, alavancas e aletas –
que alça o pesado coração com borboletas.

Agora eu queria ter um menino
– sem vergonha de ser menino –
que me despisse das roupas onde estou
e, complacente como uma nuvem que passa,
desaguasse a chuva que amanhã virá
sobre tantas mágoas que guardei ontem.

Menino, desce do seu altar e vem.
Não para sofrer nas paixões
o que o esperam como deus.
Antes, talhe-me qualquer verso seu
na folha branca, árida e humana,
e faz da vida um poema de eterna infância.

Declaramos natal, por Regina Valadares

Nos reunimos em volta da mesa, louças e talheres de minha mãe. Ela no quadro, nos olhando de lá. As travessas ganharam comidas gostosas, as taças, vinho gelado. Os cachorros, depois de pular em todo mundo, finalmente calmos. Arranhões, fios puxados, ninguém reclamou. A música do Spotify de alguém não atropelava a conversa. Ninguém gritou, conversamos alegremente, colocando em dia os muitos dias que passamos sem nos falar. Vida que segue. Depois, de barriga cheia, os presentes. Sempre bom, sempre carinhoso, como se tivéssemos escolhido esse dia pra dizer que nos gostamos e queremos que cada um ganhe algo que tenha a ver com ele. E mais depois ainda, um deita no sofá, a outro põe o pé na cadeira, a mesa, meio posta meio depenada, abriga mais conversa fiada. Não arredamos pé. Muita coisa pra contar. Lembranças divertidas. As luzinhas piscando enroladas num galho de árvore lembram o povo que é natal. Ou quase. É um natal. E da-lhe mais conversa fiada. Até que um levanta, o outro aproveita e também começa a se arrumar. Um quer uma quentinha com pernil, a outra, vegetariana, só quer a lentilha. Os que vão viajar saem de mãos abanando, só com a sacolinha dos presentes. Todos se beijam, agradecem o jantar. A Maria, responsável por grande parte, recebe merecidos elogios. Pratos empilhados, talheres separados… ai como odeio lavar talheres! A música foi-se com alguém. Apago as luzinhas frenéticas, olho os cachorros, exaustos, caídos pelos cantos, minha cama fofinha. Que noite boa. Sem fotos. Esquecemos. Só vivemos. Acredite quem quiser. Desejo a todos um natal assim, calmamente feliz.

Clube dos Escritores 50+ Adília Belotti Natal

A velha do Natal, por Adília Belotti

Era uma velha muito velha. Apesar do sol vincado na pele, tinha olhos azuis. Olhos de água. Tinha feito filhos, netos, bisnetos. Seu corpo habitava lugares onde jamais estivera. Tão espalhada pelo mundo que um dia decidiu: não acomodo mais nessa casa. Bateu a porta, largou sua vida antiga ali vendo TV no sofá da sala, saiu sem dizer adeus.

Caminhava aos começos, sem eiras, beiras, rumos. Diziam, pobre mendiga velha e louca. Não sabiam. Tornou-se catadora de Natais. Uma bola vermelha, o ramo seco de um pinheiro, pedaços de guirlandas, velas derretidas, a cabeça de uma rena, um Papai Noel quebrado ao meio, o cordão de luzinhas queimadas, estrelas que um dia haviam sido douradas. Escondia cada pequeno fragmento no manto que lhe cobria os ombros doloridos de velhices, feito do cobertor cinzento que o padre certa vez lhe dera. Tinha sido gentil, o padre. Ofereceu cobertor, cama e sopa, e tudo ela aceitou com um sorriso macio feito neve de algodão. Mas foi embora quando ele insistiu que ficasse. Não cheguei, disse. Virou-se e continuou a caminhar.  À noite, cansava-se. Dormia ao relento, embrulhada no cobertor. Os olhos azuis, antes lavados, agora embaralhavam as luzes da cidade nas estrelas do céu. Recostada nas paredes às escuras, examinava um por um os retalhos de Natal guardados no manto.

Cada um lhe contava uma história. Muitas tristes, como são alguns Natais. Do filho morto na véspera, da avó que compunha canções natalinas para ninguém ouvir, do menino que decidiu ser o Papai Noel órfão dos irmãos pequenos. Tantas outras alegres, de gente voltando pra casa, de festas barulhentas de crianças e árvores enfeitadas, de generosidades gratuitas, só porque é Natal, de encontros recheados de alegrias, de mesas postas com caprichos, da garotinha fascinada catando reflexos das luzinhas da árvore no chão da sala, dos irmãos na janela procurando trenós no céu noturno, das músicas, ah, quanta música! dos beijos, dos abraços… Sem pressa, ela soprava baixinho as histórias no ar. Não as tristes, essas ela guardava de volta no manto com delicadeza e um suspiro. Gostava de ver as histórias rodopiarem alegres no abraço da névoa noturna. Imaginava que chegariam lá longe onde adivinhava seus pedaços. Mesmo que os encontrasse, não reconheceria seus filhos, netos e bisnetos. Apenas sabia que estavam lá. E esperava.

O primeiro que surgiu da névoa foi um menino. Pequeno, assustado. A velha tirou do manto uma manjedoura quebrada. Colada nela, a história da mulher quase uma menina que tinha parido Deus. Não um Deus qualquer, um menino, pequeno e assustado como são os meninos quando abrem os olhos para o mundo. O garoto guardou com cuidado o pedaço de enfeite no bolso. Decidido, enxugou o nariz com as costas da mão e seguiu a estrela que passava.

Veio a menina caminhando desde uma guerra distante, coberta de pó e de perplexidade. Sentou-se no colo da velha que lhe deu um ramo desgarrado de alguma árvore de Natal e contou de lugares cobertos de neve, onde as pessoas constroem uma paz possível, miúda. A garotinha fechou os olhos e a velha deixou que dormisse, murmurando acalantos sobre pequenos natais felizes. Não tenho ninguém, disse a menina, quando acordou. Eu estou aqui disse a velha. E a garota seguiu na direção do norte com seus passinhos miúdos.

As histórias chamaram outros e outros, a velha acolhia cada um que emergia da névoa. Um Papai Noel de óculos, com as pernas quebradas, para o homem que havia perdido toda esperança. Uma bola vermelha brilhante para a professora de andar arrastado, exausta. Uma caixa de música quebrada para o velho ranzinza. A página arrancada de um velho exemplar de It was the night before Christmas para a mãe sozinha com seu bebê no colo que não dormia há tantas noites.

Mais tarde, sentou-se bem à sua frente uma mulher velha, não tão velha como ela mesma, mas curvada, olhos remelentos de solidão. Olharam-se as duas, deram-se as mãos. E ela tirou do manto um cordão de luzinhas de Natal que entrelaçou com faceirice antiga no pescoço magro e fino da outra, enquanto contava de laços e encontros. Ficaram assim num abraço iluminado, depois a mulher também seguiu caminho, as luzinhas piscando ao seu redor.

Ninguém conseguiu achar o fim dessa história, ficou assim, aos pedaços, mas dizem que se alguém andar muito, vai encontrar a velha soprando histórias no ar e acolhendo os caminhantes da névoa. É lá, dizem apontando ora para o norte, ora para o sul. Mas lá sempre é tão  longe….

blog Clube dos Escritores 50 Carlos Schlesinger Natal

Reflexões judaicas de Natal, por Carlos Schlesinger

E de repente, sempre de repente, chega o Natal que estava ali escondidinho. Os sintomas começam de forma leve, uma anúncio de TV aqui, uma lâmpada acolá. E a coisa vai aumentando avassaladoramente, entre ofertas de presunto tender em supermercado e as fieiras de lâmpadas na vizinhança. Um doce pânico começa a se instalar, com ameaças de encontros de congraçamento profissionais e festas de famílias imaginadas, com aquele cunhado bêbado que roubou a família abraçando a todos aos prantos e declarando amores eternos, aos gritos de que família é tudo.

O inferno – com o perdão da expressão pouco adequada à data magna da cristandade – se instala gradativamente no trânsito e, repita-se, nos shopping centers e suas filas. Cartões de crédito são esvaziados até o limite para presentear com dignidade, na esperança de que a recíproca seja verdadeira. O especial de fim de ano com Roberto Carlos é celebrado como se fosse o Messias de Haendel nacional, este mesmo nunca lembrado, senão na minha casa. Judia.

Ser judeu no Natal é provação para uma criança. A data é solenemente ignorada, não tem árvore em casa, nem presente dentro da meia ou do sapatinho ou fora deles. No máximo, umas castanhas cozidas, uns figos turcos que aparecem, umas nozes. E não me venham com essa história de Chanuká, Festa das Luzes, porque não rola. Isso é moda moderna. Jamais se comemorou Chanuká com a força do Natal e a criança que fui sublimava a data. Minto: fomos adotados pelos Souza Gomes, uma família do Pará, de queridíssimos amigos. E lá, sim, passei um Natal (talvez mais de um) inesquecível. Aliás, acho que foi a véspera e no dia seguinte, o almoço.

A lembrança me remete ao filme do Bergman, Fanny e Alexander. O apartamento no Flamengo, amplo, com a família anfitriã enorme, todos bem vestidos e a mesa central, plena de quitutes: fui apresentado aos presuntos, pernis, fios de ovos, barquetes de camarão, lombinhos e aos maravilhosos doces que desconhecia. Panetones e afins se instalavam entre as frutas secas já mencionadas e olhando do alto dos anos passados vejo um menino guloso, fascinado com um Natal de verdade.

Prossegue a vida e sou adotado em outro por um querido amigo que a vida levou e que me conduz – em contraponto ao féerico Natal da infância – à casa de seus tios, um apartamento conjugado em Copacabana. E ali também se fez a festa com a mesma alegria e sensação de acolhimento. Um hiato de 20 anos e começo a frequentar natais luxuosos na casa de outros queridos amigos, onde, para minha surpresa, meus presentes estavam reservados e embrulhados nas árvores. Nunca imaginei que tivesse que retribuir, passando assim por indiferente. Ah, que festas maravilhosas, coloridas, não necessariamente religiosas e com a esperança de dias  e tempos melhores borbulhando nos abraços e olhares maravilhados! E  nós, os não-cristãos adotados naquela noite, participando, encantados das comemorações e esvaziando a parte religiosa, da Missa do Galo, do presépio, e peneirando a nossa parte naquilo. A nossa parte é imensa, na verdade. O aniversariante é nosso correligionário, desde seu nascimento até sua morte. Vem da casa de David, como narra o Novo Testamento e olhem, é por Maria, não por José. A saga é narrada musicalmente por Händel em seu magnífico oratório O Messias, que ouço todo ano e tive a ventura de assistir no Carnegie Hall, em um Natal de anos atrás, com emoção.

E não era para isso? O Messias faz referência ao “Mighty God, the everlasting Father, the Prince of Peace”, transcrição literal da profecia de Isaías, outro dos nossos. Os tempos da paz eterna almejados. Tocante, o Messias de Händel. Mas o povão preferiu adotar a cantilena que John Lennon apresentou em “Happy Xmas (War is over)” .  Adoram, por causa do lálálá do coro infantilizado, fácil, porém irônico, mas…ninguém ouviu a letra, cáustica e acusadora:

And so this is Christmas, and what have you done. (Então é Natal e o que você fez?)

Pior que isso, a canção nem é de autoria de John Lennon, que apropriou-se, não sei se legalmente ou não, de uma músicia do folclore norte-americano, denominada Stewball, gravada por Peter, Paul and Mary, em 1963, que narra a história de…um cavalo de corrida. Então, como se diz em São Paulo, músicas de Natal, no duro, mesmo, são aquelas mais tocadas do mundo, começando por Holy Night – e seguindo com White Christmas. A primeira, composta pelo judeu francês Adolphe Adam, e a segunda, pelo judeu, nascido na Rússia, Israel Isidore Baline, o Irving Berlin. Com estas composições laicas, estes compositores celebraram aspectos da tradição cristã de valores universais de paz, amor, reunião e compreensão entre os povos.  E no momento em que escrevo, sou tomado por estes sentimentos solidários, terrenos, resolvendo as faltas de árvores de Natal da infância e superando o olhar invejoso para a festa dos vizinhos. Olho para os céus com extase pela elevação espiritual que estes pensamentos provocaram, e evoco e invoco a utopia de um mundo de paz, amor e harmonia.

Ué, o que é aquilo? Um pássaro? Um avião? O Super Homem? Não, é um trenó puxado por renas. Oh, Oh, Oh! Feliz Natal !!!

Blog Clube dos Escritores 50+ Lourdes Gutierres O pacto

O PACTO, de Lourdes Gutierres

Urdidura do destino. E nela, o cansaço pela busca de moradia. Quando dobraram a esquina, o alívio. A menina foi a primeira a avistar a placa na casa: aluga-se. Paredes descascadas, vidros quebrados, algumas manchas de mofo, ficava junto a um córrego. Dava para ver, ao fundo, o pomar abandonado e a bananeira com cachos maduros.

— Olha, vó, tem banana! Vó, é aqui!

Depois de caminhar quase o dia todo, com as pernas doendo e os pés inchados, a avó ajeitou os óculos:

— Ah, dá para si morá, sim — vamo!

Não tardou para as notícias chegarem. A casa estava há anos para ser alugada, ninguém queria morar nela — mal-assombrada. Numa noite de lua cheia, o sapateiro chegou a ouvir cantoria lá dentro, e era só escuridão. Uma mulher com vestido vermelho dançava em cima do telhado, viu a dona do armazém. Por lá, muitas mortes, de tifo, diarreia e até tiros, disseram outros.

A avó contou as economias, junto delas restavam uma correntinha e a aliança de ouro, foi negociar com o proprietário. Conseguiu redução no valor do aluguel depois de expor a situação em que se encontrava: sozinha para cuidar de seus netos pequenos. Deles não se conhecia a paternidade. A mãe, sua filha, havia ido embora, não sabia para onde, com um motorista de caminhão.

Vizinhos ajudaram na mudança e na limpeza. Pó, muito lixo, teia de aranha. E ainda o vazamento de um cano. Só no início da noite conseguiram se instalar. Os barulhos começaram logo depois da sopa. A porta da cozinha bateu com força. Ao tremor da estante, uma xícara caiu no chão. Do banheiro ouvia-se a descarga, sem ninguém dentro. Correntes rangiam. Estavam exaustos, adormeceram logo. Na segunda noite, os netos pularam na cama da avó e se grudaram ao corpo dela, a menina de um lado, o menino de outro. Como os barulhos persistiam, a avó tomou uma decisão: os três na cozinha, e ela acendeu uma vela no centro da mesa.

— Tô chamando! Chamando ocês tudo. Num temo pra onde ir. Vamo vivê junto, tudo em paz, sem assombrá. Tamo combinado?

Esperou um tempo, nenhum ruído. Considerou o silêncio como pacto aceito; com um galho de arruda saiu benzendo os cantos e todas as coisas da casa.

Depois de alguns dias, a menina vê quando ele chega. Antes de entrar, tira o chapéu e raspa os sapatos no capacho. A bengala é deixada junto à porta, ele manca da perna direita. Magro, de estatura mediana, com paletó xadrez surrado e calças claras. Na sacola traz meia dúzia de pães, fatias de mortadela e um litro de leite, deixa tudo na mesa. Em seguida, no formato de nuvem branca, some pelo estreito vão entre a parede e o armário, torna-se invisível.

— Ah, então é assim?!!!

Surpresa, mas sem nenhum sinal de medo, ela continua a descascar batatas.

Mesmo em dias chuvosos, ele aparecia no mesmo horário, quando o sino da igreja tocava no final da tarde, sempre com a sacola de pães. Acostumada com sua presença, passou a chamá-lo de Dr. Manezinho.

Numa tarde — o sino já havia tocado —, ela desenha numa folha em branco um pinheiro com bolas coloridas; embaixo dele, uma manjedoura e algumas figuras. Enquanto traça os contornos do Menino Jesus, Dr. Manezinho desponta na entrada mais carregado que de costume. Traz na sacola roscas de frutas secas, cobertas com açúcar cristal, e uma garrafa de tubaína.

Era Natal.

E tem mais, muito mais, vem ler….

Um comentário

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *