Era o começo da vida de trabalho, e muito mais por instâncias da mãe, que lhe vaticinava vagabundagem eterna, que por desejo próprio, o rapazola de 18 anos se viu na função de aprendiz de estagiário em um escritório de advocacia. Na verdade, um misto de administradora de imóveis e escritório. Mercê de seus quase inexistentes conhecimentos de estudante de 1º. ano, pareceu ao seu patrão, tio de um amigo, que a função mais compatível ao futuro Ruy Barbosa seria o atendimento de telefones na mesa da frente, um misto de recepção. Um office boy, de fato.
E lá ficava ele, num dia a dia entediado, que somente era modificado quando um advogado do escritório, penalizado, o levava ao Tribunal, de onde não sairia o jovem pelo meio século seguinte.
Mas assim foi que um dia o advogado, seu chefe, avisou-o de que às 14h teria um encontro com um cliente, que deveria ser atendido e em seguida encaminhado à sala maior. E declinou-lhe o nome: Valido.
E se deu que na hora aprazada, a porta se abriu e entrou o tal cliente, Valido, Agustin Valido, herói do Clube de Regatas do Flamengo. Valido havia dado ao Flamengo o tricampeonato, depois das vitórias de 1942 e 1943, ao marcar no último jogo da temporada, aos 41 minutos do segundo tempo, um gol sobre o qual pairaram duvidas por décadas. A acusação era a de que Valido teria se apoiado nas costas do defensor Argemiro, do Vasco da Gama, uma falta não marcada pelo juiz. E ali estava ele, o herói argentino, à frente do rapaz, que lhe conhecia a história com todos os detalhes.
– Boa tarde, garoto, disse Valido. Eu tenho um encontro com o Dr Milton, às
14 horas. Fascinado pela presença de seu ídolo, o jovem confirmou o horário, pediu que aguardasse um pouco e pespegou-lhe a indagação atrevida:
– O senhor é o Valido, do Flamengo, certo ?
-Sim, respondeu o craque, que, em seguida recebeu a segunda pergunta:
– Posso saber uma coisa?
– Fala, garoto.
– O senhor se apoiou ou não nas costas do Argemiro?
Neste ponto, convém assinalar que a tal partida ocorrera há 32 anos de então. Valido fez uma pausa e com o seu sotaque peculiar, perguntou:
– Garoto, você é Flamengo ou Vasco?
A resposta veio rápida.
– Sou Flamengo até morrer.
Valido fez uma pausa, dramática como um tango, e respondeu:
– Garoto, te voy a contar la verdad…E o jovem, ansioso por receber uma revelação daquele tamanho e impacto nacional, aguardou.
– No, no me apoye.
Este testemunho aliviou o quase garoto, já que legitimava o campeonato contestado. Porém, algo o intrigou e ele perguntou ao campeão:
– Que ótimo, muito obrigado, mas, Seu Valido, que diferença faz para a verdade se sou Flamengo ou Vasco?
Maroto, Valido explicou :
– Menino, depois que deixei o futebol, comecei a trabalhar com o comércio de madeiras. Com os portugueses, que vivem perguntando a mesma coisa, e a eles respondo que si, si, me apoye.
E assim iniciou-se uma amizade improvável que durou vinte anos. O rapazola acabou sendo advogado do jogador que havia sofrido vil traição da companheira de vinte anos, que o deixou em situação quase de penúria, conseguindo recuperar para seu ídolo um apartamento onde o tricampeão passou seus últimos anos, no Leblon. E dele recebeu, além da gratidão e carinho eternos, um dos maiores pagamentos que teve
em sua vida profissional: a foto original do time de 1944, antes da peleja, com a dedicatória manuscrita:
Querido Carlinhos,
Esta fotografia representa a grande força de um grande time; que esta força te ajude para me dar a felicidade que tanto desejo.
Agustin Valido
Missão dada, missão cumprida e em uma determinada parede de um apartamento no Rio de Janeiro, ali está, montada em um sanduiche de vidro que permite a leitura da dedicatória, sobre um passe-partout e moldura rubro-negras, a foto histórica, plena de amores.
Coisas do futebol, como Corinthiano adorei seu texto 1arlos, más nos dias de hoje sou Botafogo.
Delícia de crônica xará! Mostra bem a força das paixões futebolísticas.